Clean Feed, 10 anos: improvisação sem limites
· 21 Jun 2011 · 20:20 ·


A Clean Feed celebra dez anos. Embora nem toda a gente saiba, uma das melhores editoras de jazz do mundo tem a sua sede em Lisboa, no Cais do Sodré. Ao longo destes anos a Clean Feed já editou mais de duas centenas de gravações e conta no seu catálogo nomes como Evan Parker, Ken Vandermark, Anthony Braxton, Joe McPhee, Otomo Yoshihide ou Peter Evans. Além de todos os nomes sonantes internacionais, a Clean Feed é a casa dos melhores músicos portugueses, editando gente grande como Carlos Bica, Sei Miguel, Bernardo Sassetti, Carlos Barretto ou João Paulo e revelando novos talentos como Júlio Resende, Hugo Carvalhais ou o RED Trio. Entretanto o catálogo expandiu-se e foram criadas três séries especiais de edições: "Guitar Series" (dedicada à guitarra, orientada por Elliott Sharp), "JACC Series" (discos gravados ao vivo no Jazz Ao Centro, de Coimbra) e "Jazz Em Agosto Series" (discos gravados no festival da Gulbenkian). Em dez anos a editora não cresceu apenas, agigantou-se: se em 2001 era editado o primeiro disco, The Implicate Order At Seixal, em 2011 a Clean Feed foi convidada por John Zorn para comissariar 15 dias de concertos no The Stone, em Nova Iorque. O Bodyspace associa-se à celebração dos dez anos de existência e, além de já termos festejado convenientemente na loja Trem Azul (a vertente de distribuição da editora), escolhemos agora aqui alguns dos discos mais marcantes do seu catálogo. São meia dúzia de discos analisados por ouvintes ocasionais, amantes assumidos e por gente para quem a palavra "jazz" mete medo. Sem swing requentado, mas com muita improvisação, este é o nosso bolo de parabéns. Nuno Catarino





Lane / Vandermark / Broo / Nilssen-Love
4 Corners
Clean Feed
2007

Todas as grandes editoras assentam pilares em discos que se tornam míticos com o tempo. E há discos que se tornam míticos mais rapidamente que outros. Este 4 Corners pertence a essa elite. É um mítico instantâneo. Gravado ao vivo em Junho de 2006 no Salão Brazil em Coimbra, é um exame exaustivo ao jazz em plena cidade dos estudantes. Tudo começa depressa e a divagar por uma Alfama de recantos e irregularidades cubistas, a lembrar pinturas de Braque movidas a óleo de motores mais groove. O meio de transporte é o contrabaixo distorcido de Adam Lane, que se torna num guia cujo fado é abrir portas aos diálogos entre Vandermark, Broo e Nilssen-Love. Diálogos que entram numa particular conversa a dois, entre tompete e bateria, à qual se junta novamente o sax de Vandermark para o apogeu aos 6:57. O timing exacto em que todos falam ao mesmo tempo e Lane regressa ao groove de fuzz-box orientador em tons de festa aberta a Funkadelic e Ornette Coleman. "Spin With the EARrth" continua em homenagem, mas progressivamente mais Eric e Charles: Dolphyniana primeiro, e depois rendição absoluta ao mestre Mingus por parte de Lane, que compôs o próprio tema, havendo inclusive uma versão anterior com outros músicos, Vinny Golia e Vijay Anderson.

Em seguida, continuação indirecta com a sombra do grande Ornette Coleman e homenagem a um dos seus lendários colaboradores: o trompetista Bobby Bradford. Persistem diálogos maravilhosos, com Nilssen-Love a aumentar a sua influência rítmica ao nível de um polvo free-bop que liberta os tentáculos para um solo magistral que nos pinta na mente um quadro de caras felizes, porque assim imaginamos as caras de que estava lá naquele momento, naquela sala da cidade do Mondego. Isso nota-se aliás, pelo aplauso e grito espontâneo pós-solo, surgindo primeiro com a entrada de Lane, e depois com Vandermark e Broo, num registo próximo da energia visceral do rock. A distorção é o comboio daquele momento. Em "Lucia" — a paragem mais bela deste comboio — a vertente é mais clássica, cruzando-se melodias mais cinematográficas até aos 7 minutos, altura em que fecha a cortina e se reabre o livro da escuridão atonal, teatro de fantasmas de Berio e Varèse, sempre com Mingus como maestro.

"Ashcan Rantings" chega em ritmo paralelo a mundos Black Sabbathianos, provavelmente numa lógica jazz-rock atingida no passado pelos seminais Magma, silenciando a secção rítmica aos 2 minutos para um diálogo apaixonante entre Ken e Magnus, rebentando as costuras do conciso 2 minutos depois, com o regresso do contrabaixo e da bateria ao vulcão em erupção que se torna intermitente, expelindo magma sónica umas vezes mais perto do jazz, outras vezes mais perto do rock, agora sim, Black Sabbath com Sun Ra em ritual negro. Lane atinge o ponto mais cósmico da noite, a distorção chega à fusão de Coleman revista por uns Soft Machine, à sujidade sónica de James "Blood" Ulmer: é hora de Prime Time versão século XXI e mais uma vez imagino os rostos enxaguados de melodia no banho de multidão naquele dia de Junho. E porque era tempo de estudo e de homenagens, eis Art Ensemble of Coimbra, perdão, Chicago, na pessoa de Lester Bowie, em tempos arauto do amanhã que acontece hoje, exactamente hoje, seja em 2006, seja em 2011. Uma cereja deliciosa em qualquer bolo de anos da Clean Feed, que mostrou ao mundo como Coimbra tem mais encanto na hora do free-jazz. Nuno Leal



Otomo Yoshihide's New Jazz Quintet
Live In Lisbon
Clean Feed
2006

Quem foi no Jazz em Agosto 2004 terá assistido a um dos mais intensos espectáculos musicais que Lisboa presenciou nesta década. O quinteto dirigido por Otomo Yoshihide apresentou-se acompanhado pelo saxofonista Mats Gustafsson, presenteando o público do auditório ao ar livre da Gulbenkian com uma actuação inesquecível. Dois anos depois foi editado este disco, que regista esse fabuloso concerto. O disco demorou a sair, mas está lá tudo: as estruturas jazz dinamitadas pelos gemidos free, a incrível energia rock, a candura melódica, a descarga noise, tudo cientificamente mesclado. O disco abre com uma revisão de "Song for Che", tema que Charlie Haden dedicou aos movimentos de libertação das colónias no CascaisJazz em 1971 – e que consequentemente levou à sua prisão pela PIDE. O grupo de Otomo revoluciona a canção já de si revolucionária, injectando-lhe electricidade e labaredas, e às tantas entramos sem saber já dentro de outro tema – atenção, as chamas continuam a arder. Ao segundo tema abrandamos um pouco: "Serene" é um fio sonoro (pequeno drone) que alimenta a tensão, que vai crescendo, para rebentar numa melodia certinha, serena, por volta dos cinco minutos; repete-se a dose, agora versão mais rugosa, e novamente final bonito. "Flutter", o terceiro tema, abre com o feedback da guitarra de Otomo, sempre aquele gemido eléctrico presente, para desembocar numa melodia de aparência ornettiana. Pelo meio há libertinagem sonora, com destaque para os clímaxes do sax de Gustafsson. Após toda esta turbulência seria inevitável a redenção. Esta chega na forma de balada estranha, "Eureka" de Jim O'Rourke revisitada, o trompete trémulo a espremer toda a melancolia melódica. Aquela melodia simples é trabalhada em espiral, repetida infinitamente, até que se a melancolia se transforma numa de raiva imensa, instrumentos em desvario, mas sempre às voltas da melodia, que nunca se perde. Combinando elementos de doçura com doses massivas de aspereza, Otomo gerou uma música originalíssima, rica, inolvidável. A melancolia vira raiva, um concerto inesquecível virou disco histórico. Se a Clean Feed é globalmente considerada uma das melhores editoras do mundo é precisamente por causa de discos como este. Nuno Catarino



Júlio Resende Trio
You Taste Like a Song

Clean Feed
2011

«A que sabe a canção? A que sabe a música?» – as perguntas surgem das entranhas deste CD, e as respostas vão-se formando através das suas nove faixas. "Silêncio – For The Fado" inaugura o registo do trio encabeçado pelo pianista Júlio Resende, começando a levantar a ponta do véu. O tema começa calmo para depois abrir, uma e outra vez, como uma flor que rompe sedenta de vida, anunciando a Primavera de Bill Evans. A introdução de "Um Pouco Mais de Azul" partilha desta poesia, mas logo a composição se desdobra em arranques intercalados por pausas que sugerem uma dança entre os instrumentos. O tema-título aponta à dualidade do álbum, síntese entre lirismo e pujança. A composição, enérgica, é conduzida pelo piano mas a bateria de Joel Silva e o contrabaixo de Ole Morten Vagan marcam os compassos. "Hip-Hop Du-Bop" é outra das composições vibrantes. A bateria arrisca o efeito scratch e assistimos a uma disputa amigável entre groove e melodia.

You Taste Like a Song vive também da abordagem a temas de outros compositores. A riqueza dos Radiohead constitui um factor de atracção para quem se move nos territórios da música experimental/improvisada, sucedendo-se versões das suas músicas. "Airbag" revela-se fiel ao espírito da composição original sem a mimetizar. O contrabaixo introduz nuances nas transições e o diálogo estabelecido com o piano faz a música progredir numa narrativa não-linear. Em "Who Did You Think I Was" (original de John Mayer) um baixo fortíssimo espera-nos logo à entrada, e juntam-se a ele o piano e a bateria – também em fúria – para comporem um tema pleno de garra, mais emotivo que racional. Para fechar, "Straight No Chaser". O standard surge vigoroso, com uma percussão quase tribal a abrir. Thelonious Monk foi um inovador do piano, com um approach invulgar – forte, tenso – do instrumento, que percutia como se fosse um tambor. E o trio de Júlio Resende mostra-se digno do legado deste e de outros mestres. A sua música sabe a amor e fúria, arrebata-nos a alma e mexe com o corpo.Hugo Rocha Pereira




V/A
I Never Meta Guitar

Clean Feed
2010

Um completo leigo na matéria, como este escriba desde já se assume, irá quase sempre pensar no jazz como "aquele estilo que mete saxofones e essas merdas". E, na verdade, sempre que se pensa em grandes músicos de jazz, pensa-se nos grandes mestres do sopro (Miles, Coltrane, the list can go on), por vezes em contrabaixistas ou bateristas, mas poucas vezes nos senhores da guitarra. Deixando a explicação sobre porque é que isto acontece para os mais entendidos, importa falar de I Never Meta Guitar, um título que parece até remeter para este "problema". Esta compilação da Clean Feed abarca vários dos nomes que fazem do jazz a sua linguagem e da boa e velha guitarra a sua boca, com temas que vão do discurso pensado ao mais improvisado. Se tivermos de mencionar pontos altos – e temos sempre – há que falar do belíssimo "Study For Hairpin And Hatbox", de Nels Cline, a fazer lembrar as praias nunca visitadas de um Brasil que só se conhece pela bossa nova; o blues de Michael Gregory, numa faixa apropriadamente intitulada "Blue Blue"; ou "Coiled Malescense" de Mick Barr, ruidoso, claustrofóbico e acelerado q.b., a fazer lembrar a enormidade do Black Metal. Para um completo leigo na matéria não poderia haver melhor introdução. Paulo Cecílio




Will Holshouser Trio
Reed Song

Clean Feed
2002

Atesto desde já, como já outros colaboradores neste artigo o fizeram, que não sou um especial entendido nos complexos meandros do jazz. Concretamente no jazz numa vertente de improvisação. E o motivo não é difícil de entender: todos nós possuímos ouvido duro para determinadas tipologias ou vertentes. Nada de mal. Tudo muito humano num universo feitos de múltiplos gostos, uns mais extravagantes que outros, outros definitivamente mais terra-a-terra. Relutante ao início, avancei, passo a passo. Não querendo deixar de participar neste "festim" dedicado à Clean Feed, fui tentando abraçar as propostas que o Nuno Catarino me foi apresentando. Foi nesse processo que cheguei a este belíssimo espécime do catálogo da editora portuguesa: Reed Song – editado em 2002. Na cabeça desta acção tripartida está o acordeonista nova-iorquino Will Holshouser, devidamente acompanhado por David Phillips (no Baixo) e Ron Horton (no trompete).

É neste triângulo amoroso que se esculpe um disco repleto de fantasias entre o burlesco e o bucólico, o delírio e a contemplação, repleto de laivos de tango e nostalgias românticas com Paris ou Nova Iorque como pano de fundo. É decerto invulgar a presença do acordeão nas andanças do jazz de improviso – já agora, nas restantes vertentes do jazz –, mas aqui ele distingue-se pela forma como cria magia e singularidade num mise-en-scène onde as personagens actuam numa constante dualidade emotiva. Ora eufórico e festivo, ora melancólico e introspectivo, neste diálogo acordeão/ trompete surge uma miríade de possibilidades onde toda esta especulação sonora assentaria com grande distinção num qualquer filme onde um grande amor estivesse a ser posto á prova. Se deixarem, por momentos que seja, o preconceito à porta, descobrirão como é possível sentir bem esta música sem insistir estupidamente na ideia que tudo não passa de um disparate composto por tontos. Aqui há arte e é um leigo que o afirma com convicção. Rafael Santos




Jonh Butcher & Paal Nilsen-Love
Concetric

Clean Feed
2006

Dez anos e um catálogo majestoso pejado de momentos incríveis tornam a tarefa de escolher apenas um disco para esta homenagem à Clean Feed numa tarefa tão gratificante pela redescoberta como hercúlea na decisão. Ao deixar pelo caminho discos tão marcantes como Shout! do Charles Gayle, A Glancing Blow do trio Parker/Edwards/Corsano ou esse colosso que é Four Improvisations do duo do Joe Morris com o Anthony Braxton, a escolha deste Concentric acaba por se assemelhar a uma vitória pírrica. O rastreio necessário, permeável ao facto de ter sido um dos meus primeiros contactos com a editora portuguesa com todo o carinho que isso acarreta, e sob a influência desta colaboração algo inusitada ter como protagonistas dois dos meus músicos preferidos dentro deste espectro.

Concentric não esconde as naturais fragilidades do encontro de dois Mundos distantes, mas é nessa mesma "fricção" um objecto fascinante, que não sendo essencial, é uma gema com um lugar muito particular na longa discografia dos dois músicos. Estudioso do saxofone na área da amplificação, do feedback e do multitracking (particularmente no seu percurso solista), John Butcher é um explorador nato, que passou os anos 80 a colaborar com gente tão fundamental como o Derek Bailey ou Eddie Prévost e que teve com o Phil Durrant um dos meus discos de formação na área da música improvisada (Secret Measures é assim qualquer coisa de indescritível). Já Paal Nilssen-Love é daqueles gajos que mal acabou a adolescência foi desde logo visto como um dos valores de futuro da percussão (nesse aspecto, faz todo o sentido a comparação com o já enorme Gabriel Ferrandini), acabando por superar todas essas expectativas por via de um trajecto excelso que já o pôs lado a lado com nomes como Peter Brötzmann, Lasse Marhaug ou Mats Gustafsson (a música incendiária dos The Thing, por exemplo).

Em Concentric a textura assume um papel predominante, onde os avanços e recuos são conduzidos com bravura numa dimensão que nunca cede ao torpor contemplativo nem se presta ao ataque feérico. "Pipestone" ainda arranca alguns urros mais agrestes do saxofone tenor do Butcher, em confronto com a cascata de pratos de Nilsen-Love, mas prevalece uma aura de tensão que nunca chega ao release absoluto, fazendo desse capture melífluo uma condição em si mesmo. São, aliás, os momentos de maior estaticidade que conseguem unir de modo mais interessante a matéria residual deixada em aberto pelos músicos, concentrando um diálogo escapista que em "Mono Lake" chega a fraseados bem mais melódicos do que seria inicialmente previsível. No final, os quase 18 minutos de "The Stob" procuram concentrar todas essas premissas, mas pairam num hit and miss intrigante com algumas passagens bem jazzy que nem sempre se relacionam da melhor maneira com os momentos mais abstractos. A assumpção do erro como via para o centro gravitacional que o título sugere. Excursão contínua em torno de um hipotético ponto G ("o mito") que quando atingido, bem, já se sabe... Bruno Silva


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