Technomental
· 29 Mar 2011 · 00:50 ·
© Margarida Castel-Branco

Música de dança: um termo generalista que diz tudo e nada simultaneamente; que especificamente revela os seus propósitos, mas que se apresenta numa multiplicidade de facetas que vão do tradicional ao modernaço, do ritual espiritual ao puro hedonismo físico. Seja qual for o objectivo, dançar é mesmo um ritual de libertação, de escape, purificação da alma onde a música irrigada por cadências expressivas tem um papel essencial. É assim desde que o homem em África deu os primeiros batuques inventando ritmos padronizados (amiúde com relevância social) que se disseminaram pelos quatro cantos mundo até ao ponto da evolução disciplinada – e mais pragmática – da noção de harmonia nas pautas a que se chamou composição musical.

De que se trata quando se fala de música de dança nestes dias em que as designações tornam-se tão vastas, ambíguas e em que constantes neologismos substituem velhas expressões? Deixando de lado, por agora, formas de música ritmada de expressão popular tradicional (do batuque ritualista africano ao ragtime, do tango ao malhão), focando as atenções sobre as dialécticas contemporâneas da música de dança de cariz urbana, vejam-se – em concreto para esta curta recensão – as evoluções do techno e até mesmo da house (as fronteiras confundem-se com frequência), tipologias hoje perfeitamente aceites e reconhecidas – já por vários escalões etários – pela provocação à dança. Nascido eles próprios como consequência de avitas manipulações “genéticas” com escola nos anos 1970, são hoje géneros de inquestionável identidade (desde sempre sujeitos a provações geradoras de mutações) e com um espaço próprio no panorama da música popular onde a especulação é uma ferramenta do evolucionismo. Subcategorias foram nascendo, outras foram-se fundido e outras que desapareceram. Tudo provas que confirmam como a música, em geral, se tornou num organismo vivo sujeito a uma evolução darwiniana onde géneros mais fortes na substância dominam os mais fracos de conteúdos.

De novas tendências underground no final dos anos 1980 a gerador e gestor de novos pragmatismos na era pós-rave, a conjectura techno e house nos nossos dias é feita de uma miríade de disposições, todas em órbitas distintas e com propósitos já definidos. Umas mais dançáveis, concebidas com o propósito de proporcionar puro hedonismo e desenhadas especificamente para um local de abstracção onde – pela mão de um DJ com sentido de propósito e selecção ecléctica – a libertação seja garantida: as pistas de dança. Outras menos dançáveis no imediato, mas sempre com um groove capaz de acalentar a alma e a anca seja qual for o sítio: o carro, a cozinha, a discoteca ou um bar; em casa com headfones ou colunas colossais nos festivais; a ler um livro ou a fazer amor. Depois ainda há as outras, as mais cerebrais, a dita Inteligent Dance Music; complexas equações matemáticas, intrincadas especulações electrónicas, relatos chegados de um qualquer universo paralelo; música necessária de atenção e de estados de alma, certamente mais especifica para melómanos havidos por novas soluções sonoras. No fundo uma música, muitas vezes de autor, nada preocupada com efeitos primários e secundários, muito menos com hypes nas pistas de dança.

Dançar ou não dançar será mesmo a questão perante estes discos techno (ocasionalmente com pitadas house pelo meio) com uma vertente mais cerebral (que não é sinónimo de inacessível) que o Bodyspace sugere esta semana. Entre a sugestão do dancefloor e o sofá, entre a estratosfera e as rachas dimensionais no Universo ou entre as formas mais consensuais de expressão criativa ou complexos emaranhados aritméticos que levam semanas a descodificar, todos estes discos possuem um genuíno desejo de descoberta de novos padrões que enriquecem a música, a alma alheia, a pista de dança ou o quarto lá de casa. E apesar de não inventarem verdadeiramente novas realidades, eis como do quarto mundo (cada vez mais dominado pela máquina mais engenhosa), e já outrora dominado por outros pioneiros, ainda vêm propostas interessantes para rasgar com a letargia dos dias cinzentos. Isto é o que 2011 tem neste momento para oferecer. Dança quem quer, como quiser e onde lhe der para tal, com ou sem uma calculadora; com ou sem recurso a estímulos extra. Technomental:




Sandwell District
Feed Foward
Sandwell District
2010

Há quem não esteja para modas. Há quem nem sequer esteja em busca de protagonismo. Porque a discrição também pode ser a alma do negócio, este super-colectivo britânico, que é a súmula do catálogo da misteriosa Sandwell District – e assim se assumirem neste invulgar projecto –, são à semelhança dos Basic Channel – que também se confundiam com a editora – um projecto nos antípodas do que por aí se vai fazendo em puros territórios techno. Feed Forward é a feliz consequência da fusão dos estilos que caracterizam os seus autores. Entre Detroit imaculado, o dub-techno de baixas temperatras, áspero e industrial (onde também a Ostgut Ton também tem mostrado belos resultados), o experimentalismo cru, o ambientalismo de Brian Eno e o techno melódico de 90 com queda para o transe, este disco será muito provavelmente das raras oportunidades que os verdadeiros amantes do techno terão para desfrutarem da confluência sonora que tanto convida à levitação como à dança. Hipnótico, pujante e estranhamente sedutor. Uma viagem física por um espaço virtual que poucos guardam memória, mas que existe para prazer de quem se queira envolver instintivamente sem preconceitos e sem a mania párvola das modas. Techno genuíno, contemporâneo e no seu estado mais natural: aqui.


Hunting Lodge



Isolée
Well Spent Youth
Pampa Records
2011

Há sinais de maturidade quando se reflecte sobre o passado e dele se extrai conclusões. Não que ao fim de três discos de originais, e uma actividade de pouco mais de 10 anos, haja uma necessidade extrema de reanimar o ritmo do diapasão da carreira porque se julga ter atingido um obstáculo intransponível. Nada disso por aqui. Well Spent Youth mergulha inteligentemente no percurso sonoro passado – menos em Rest, mas indiscutivelmente no património de We Are Monster – trazendo à superfície os nutrientes que cimentaram um percurso estético singular. Rajko Müller distingue-se dos demais não por se apresentar com uma escrita radical, procurando extremos retóricos indecifráveis ou divagações sem particular destino, mas sim pelo raciocínio elementar das linguagens primarias do techno e racionalização ecléctica de um IDM que, admiravelmente, nem sempre tem na escola de 90 a principal fonte inspiração. E se com os primeiros trabalhos se discutiam os elementos constituintes da chamada micro-house, Rajko Müller estabelece-se de vez – sem rótulos inúteis – num distinto terreno onde valem os seus propósitos, agora completamente refinados: uma sonoridade intrincada mas fluida, estimulante sem procurar orgasmos imediatos, feita de pormenores à espera de serem absorvidos. E talvez por isso Well Spent Youth não esteja acessível para alguns menos dados à minudência, apesar de ser um dos melhores e mais consistentes discos techno e house dos últimos tempos.


One Box



Lucy
Wordplay For Working Bees
Stroboscopic Artefacts
2011

É o mais obscuro e experimental registo que o Bodyspace aqui propõe. É aquele que vive mais distante da realidade actual, sendo mesmo um errante nómada em busca de certezas numa dimensão techno completamente alternativa à dança. A sua sonoridade alienígena, que no seu longo trajecto para chegar a este porto virtual se cruzou com as órbitas irregulares de Moritz Von Oswald, Monolake ou Autechre, faz-se de atmosferas metacromáticas e densas, de muzak digital, idílico, capaz de sugerir a levitação dos corpos mais pesados, de pulsações inexactas, cadências erráticas. Sente-se levemente Richard D. James (de Selected Ambient Works II e Caustic Window), o seu toque singular nos ambientes. Wordplay For Working Bees é o auspicioso disco de estreia de Luca Mortellaro, italiano que largou a terra natal para ir para Paris para depois aterrar em Berlim. Foi aí que criou a sua própria editora, a Stroboscopic Artefacts, e foi por aí que se fez notar. Wordplay For Working Bees é techno minimal ambiental submerso em águas frias num planeta Terra hexágono, estranho e bizarro onde o mais cerrado dub digital provoca sérios problemas na gravidade. Fisicamente instável, mentalmente lúcido.


Gas



BNJMN
Plastic World
Rush Hour Recordings
2011


Soprarão ventos de mudança na nova música techno e house produzida na Inglaterra? Ainda será difícil de determinar. Mas a Rush Hour parece acreditar que sim. Além estar, em nome da pedagogia, a recuperar os clássicos house da mítica Trax, de Virgo/ Virgo Four, Anthony 'Shake' Shakir, algum material inicial de Recloose de finais de 90 ou contratar lendas vivas como Rick "The Godson" Wilhite, a editora holandesa tem olhado (com algum suspiro saudosista) para a produção actual para nela encontrar os elementos da electrónica académica de 90 (que encantou uma geração pela constante descoberta de novas possibilidades) entrecruzada com a actualidade mais pertinente. Talvez por isso, ouvir uma música que revela à primeira audição tamanha refinação dos elementos da música de Black Dog, Autechre, Richard D. James – e outros iluminados que a Warp acolheu no início dos anos 1990 – tenha convencido os responsáveis da etiqueta para a imediata assinatura do jovem produtor britânico BNJMN. Plastic World é mais uma estreia que reflecte os ensinamentos do passado no presente. Começa a soar a um lugar-comum afirmá-lo. Mas também não valerá negar as evidências quando hoje tudo vive cada vez mais da reciclagem de ideias. BNJMN vale neste baralho pelo sincretismo capaz da proficiente convergência entre a velha e a nova escola. E sim, estamos perante uma nova geração a descobrir a origem do IDM. Tal como Actress, com quem partilha algumas afinidades, deturpa, viola, reconfigura e desmonta todos os mecanismos considerados obsoletos, substituindo-os por material desusado, pertinente na actual conjectura, definindo no processo novos padrões de cor, luminosidade e contrastes. Plastic World é mais uma aventura techno, house e electrónica ambiental preenchida com sonhos digitalmente ornamentados com exuberância, mas que também sabe criar ambientes menos saturados, mais introvertidos, que permitem o escorrer sóbrio de elementos melódicos mais simples. Uma navegação segura para o futuro? Pela Rush Hour, tudo indica que sim.


Traditions
Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com

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