Da partitura para o laptop
· 14 Jan 2003 · 08:00 ·
O papel do crítico (palavra ingrata) é sempre difícil. A avaliação de processos criativos tão subjectivos como a pintura ou a música está permanentemente sujeita a erros: lembro-me agora do famoso adjectivo sarcasticamente colado a Matisse e seus pares, os Fauves, ou seja, as “feras”, que acabaria por ser, de resto, o nome por que seriam conhecidos. Por outro lado, a teorização da história da Arte é um campo em permanente (des)construção; já não choca colocar um Picasso ou um Rodin em causa, principalmente numa época de super-relativismo. Nada é bom ou mau senão posto num determinado contexto e de um determinado ponto de vista.

Qual é então o papel dos críticos, senão o de tentar proteger os artistas e argumentar o impossível, que é o tentar justificar actos de criação frequentemente retorcidos e ambíguos, e cujo caso supremo é o da música pop contemporânea? Com efeito, a música passou, desde há muito, de uma disciplina regrada e metódica para uma indústria de imagem e de hypes, tendo essa vertente “erudita” (outra palavra ingrata) passado para segundo plano, e tornado para o ouvinte comum pouco acessível (confesso não saber até que ponto o era dantes).

Desapareceram, ou pelo menos foram relegados para segundo plano, os grandes génios da música, os movimentos estéticos esbateram-se, e na segunda metade do século XX surgiu, avassalador, a música pop. Para a crítica, e na avaliação de qualquer fenómeno musical, a maneira de encarar as coisas torna-se substancialmente diferente. Subitamente, a relação com os media torna-se cada vez mais importante, diria mesmo essencial.

Em relação à música em si, o pop, e agora vou ser polémico, não trouxe tantas revoluções como isso – pop no sentido da música não estudada, não académica. Melhor: trouxe, mas deixou de lado vectores fundamentais que tinham sido conquistados nas épocas anteriores, no que se refere à riqueza melódica e à própria metodologia de construção das músicas: no pop, é raro o uso de pautas, conjugado com a não-formação dos músicos, o que coincide diversas vezes.

(O mesmo se passa com os críticos, e é curioso constatar a frequente falta de consciência de como as coisas se passam na cabeça do músico. A falta de formação da crítica, e consequente falta de saber, de experiência do fazer, conduz inevitavelmente a erros de avaliação das propostas musicais. Falta o estar no papel de músico para sentir, verdadeiramente, quais as falhas, os truques, as virtudes e os defeitos. No entanto, o crítico não tem necessariamente de separar o bom do mau. A sua função será também a de apontar caminhos estéticos, não apenas o de descobrir o que está por trás de cada som, de cada melodia. Cabe-lhe assim afirmar o “gosto/não gosto”, e tentar transmitir para o papel as sensações à partida indescritíveis da audição. Da riqueza do som para a riqueza da escrita.)

Voltando aos estereótipos de composição da música pop: nesta, a complexidade formal reduz-se ao nível do que pode ser decorado ou apontado, tornando-se quase impossível a conceptualização que só existe nas partituras, onde se pode pensar a música, imaginá-la, racionalizá-la. É por isso trabalhoso, e também pouco provável, passar de certos limites de criação sem ter um meio fiável onde compor e não deixar os sons fugir.

E é assim que aparece o novo meio de composição, o computador: usado primeiramente no meio “experimental” (última palavra ingrata: a experimentação deveria fazer parte de qualquer acto artístico) e “erudito”, e finalmente integrado nas correntes da pop, permite o que de outra forma não seria possível: a conjugação de uma variedade virtualmente infinita de sons e instrumentos, manipulados a bel-prazer do home musician. Também agora a formação deste é muito subjectiva, sendo muitas vezes de maior importância o conhecimento do meio (do computador, que é extraordinariamente complexo) do que das relações entre as notas. Porém, a música que acontece no Fruity Loops ou no ProTools baseia-se em pressupostos radicalmente diferentes dos que basearam as correntes de índole clássica, pressupostos estes que eram os dos acordes, das melodias, da já referida “relação entre as notas”. Obviamente que esta afirmação não é linear, e é passível de ser criticada. No entanto, my point is: a música a que chamamos hoje em dia de chill-out, downbeat, idm ou trip-hop parte de uma base melódica geralmente simples, para obter novas texturas e sensações. Interessam cada vez mais os sons usados. Por outro lado, o computador permite novas possibilidades a todos os níveis. Existem programas específicos para tipos de música bem determinados.

Em jeito de conclusão, que nunca o é, expresso a minha curiosidade em relação ao futuro da música electrónica. É também importante referir que um computador não rejeita as pautas ou o estudo e a formação musical. As experimentações que levaram, um dia, à descoberta da musica digital partiram muitas vezes de músicos experimentados (na música electroacústica, na música concreta, etc.), que não rejeitaram a utopia de haver, num qualquer dia, um meio tão sublime e eficaz de passar para sons o que ecoava apenas dentro da sua imaginação como um computador.

Nuno Cruz

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