Sonic Arts Network – postais multimédia de um mundo lá fora
· 02 Nov 2007 · 07:00 ·
© Teresa Ribeiro

A cada nova edição, a britânica Sonic Arts Network propõe um postal detalhado – aliando texto e som - enviado a partir de um âmbito musical completamente efervescente em termos criativos, mas que, à partida, se encontraria camuflado por tudo o que o transcende em visibilidade. Bem recentemente, coube ao compositor angolano Victor Gama, na compilação de Periférico, identificar visão e pertinência musical à periferia de uma bolha alimentada pela globalização demasiado incidente na sua fonte ocidental. Antes dele, também a japonesa Junko Wada se havia decidido por algumas selecções emocionais num muito climático Music Dances Itself que, era ao mesmo tempo, montra para música adequada a performances de dança artística. Otherness e The Topography of Chance mantêm semelhanças com esses, mas, ao mesmo tempo, respeitam a universos totalmente diferentes. São dois bilhetes para privilegiadas viagens ao que se faz lá fora.

V/A Otherness
2007
Sonic Arts Network

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http://www.sonicartsnetwork.org


A compilação temática efectuada por David Cotner em Otherness merece um grau de interesse que tem vindo a ser sinalizado com os vários ensaios que o californiano tem dedicado principalmente à música feita à margem do óbvio, sem que isso implique a recusa total da cultura popular, que chega a cativar a atenção do ensaísta. É possível tomar contacto com uma parte representativa dos textos de David Cotner na residência mantida na LA Weekly (alinhada aqui) e nas participações ocasionais na muito recomendável publicação online Paris Transatlantic (a conhecer aqui). Não faltam ideias a alguém que, em meados dos anos 90, propôs um método – conhecido em inglês por literalism - em que encorajava à produção de música a partir da representação física dos vários elementos de composição (referindo, como exemplo disso, a hipótese de alguém desenhar letras no em frente de um theremin). O próprio expõe em Otherness o seu método com “I Think the Limite Should Be (Three Minutes)”, enigmática faixa em andamento invertido, que não oferece grandes esclarecimentos, mas que comporta uma enorme dose de manipulações.

Contudo, e excepcionando esse e mais um par de exercícios menos convincentes, Otherness é de uma validade enorme enquanto levantamento do que de mais representativo se produz num limiar musical distante de toda a terra firme. De acordo com Cotner, a Otherness representa não ser-se jovem, mas também não ter chegado ainda à idade adulta, a ausência súbita do som constante de um motor, tudo aquilo que se situa no espaço imediatamente inferior ao planeta Terra. Com a sua selecção, o colaborador da LA Weekly pretende essencialmente expor exercícios dificilmente identificáveis como musicais a uma primeira escuta, teorias aplicáveis que ainda não obtiveram o estatuto de dogma (persistentemente contrariado por aqui), tentativas arrojadas de quem se manifestou primeiro e só muito mais tarde reparou que isso poderia ser alvo de juízo.

Enquanto observatório de um limbo musical, Otherness aponta quase sempre a sua preferência na direcção das facetas mais ocultas retratadas a nomes majestosos: os Faust conhecem direito a referência dupla na companhia de dois colaboradores diferentes, o visionário Karlheinz Stockhausen vê “3x Refrain 2000” ser limitado a um excerto de sete minutos, Z’EV surge numa elegia em modo drone dedicada a Arthur Lee dos Love. Além disso, tem a atenção ganha qualquer objecto que conte com um testemunho de Lee Ranaldo (guitarrista dos Sonic Youth) em que o próprio expõe os motivos que o levaram, em “Shibuya Displacement”, a reaproveitar uma mensagem transmitida nos altifalantes do metro de Shibuya, em Tóquio, para suscitar uma ideia de deslocação ao reproduzir a mesma em Nova Iorque. As revelações não se ficam por aqui. Os Indian Jewelry são justificadamente promovidos à nova out-music norte-americana com a inclusão do êxtase sujo de “Lost My Sight” (que já concluía o fabuloso Invasive Exotics) e Michael Prime detalha num artigo o processo meticuloso adoptado na sua ode experimental às propriedades benéficas dos cogumelos, através de uma ideia recuperada a uma frase de um dos episódios que John Cage incluiu em rodapé no seu obrigatório livro Silence. Otherness é manual de peso para quem tencione aventurar-se por este lusco-fusco categoricamente documentado por um David Cotner a manter debaixo de olho.

V/A The Topography of Chance
2007 - Sonic Arts Network

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Factores aleatórios geram factores aleatórios, ou, pelo menos, é isso que procura provar Stewart Lee no conjunto altamente conceptual de música que reuniu em The Topography of Chance. O próprio conta a história da concepção frisando à mesma a perspectiva casual da maçã que cai a um ramo de árvore. Eis que em determinado Inverno em Cardiff, Stewart Lee, escritor, comediante e realizador, encontrou um grupo de pessoas a percorrer o rio numa plataforma e a envergar um poster gigantesco com o rosto de alguém que veio a descobrir ser Emmett Williams, nome associado a uma corrente artística conhecida por Fluxus – ramificação do Dadaísmo que engloba vários meios e que deve parte da sua origem aos conceitos de John Cage focados na utilidade do acaso na arte. Intrigado por esse contacto abrupto com os entusiastas de Emmett Williams, Stewart Lee decidiu aprofundar a sua investigação e tem em The Topography of Chance a oportunidade de a partilhar através de um brainstorm que procura repercutir nos atentos o mesmo magnetismo inicialmente produzido por essa tarde de coincidências em Cardiff.

Stewart Lee elabora um atlas da música afectada pelo imprevisível, destacando a noção de que o som, tal como a folk ermita, vagueia por toda a parte. Pesa sobre The Topography of Chance a folk, sem que essa eclipse os restantes momentos impares. Não admira pois que muitos dos casos presentes sejam felizes acidentes revelados em formato perdidos e achados: o obscuro item de culto Rodd Keith vê um single ser promovido ao seu espólio de improbabilidades folk-pop, o improvisador Derek Bailey descreve em voz a experiência hilariante que – na senda de uma colaboração desafiante - o levou a tocar com um violinista pouco ou nada compatível, Mark E. Smith dos Fall revela a sua faceta de Gabriel Alves ao enumerar os resultados de uma jornada de futebol em Inglaterra. Pode estar no último o portal certo para descobrir o mais pessoal trabalho spoken word do líder dos Fall.

Em termos práticos, The Topography of Chance quase arrisca a ser tomada como uma roldana que se soltou, por acaso (claro!), à colossal Anthology of American Folk Music, empreendimento de Harry Smith lançado originalmente em 1952 e reeditado em 1998, e que seguiu rodopiante sobre uma encosta minada por estranheza e contrariedades que, por serem insolúveis, são invertidas ao ponto de se tornarem vantajosas - repare-se, por exemplo, em como Howe Gelb dos Giant Sand e a sua guitarra extraem a maior beleza às insónias de uma criança que persiste em cantar espontaneamente melodias surgidas da sua traquinice. Os maiores estoiros escutam-se quando a tal roldana atinge terrenos que não constam ainda do mapa de informação acumulada. Fazem-se boas descobertas por aqui.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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