Passar a fronteira: uma visita ao territĂłrio musical espanhol
· 23 Abr 2007 · 08:00 ·
© Angela Costa

Um olhar atento pelo panorama musical espanhol permite facilmente perceber que, até pela extensa população do país vizinho, as bandas (principalmente indie) nascem como pimentos padrón na Galiza. Existe realmente uma tendência para os espanhóis seguirem o caminho do indie rock, do indie pop ou do indie qualquer coisa, mas existem também bastantes focos espalhados por todo o país de outras experiências musicais, de outras músicas (Barcelona então tem em carteira bastantes nomes apetecíveis). A música improvisada não é um campo especialmente explorado em território espanhol. Ou estarão essas bandas demasiado escondidas e com medo de se mostrar? É um território vasto. Ao mesmo tempo é fácil não ir ao encontro de certas por bandas por completo, ver nascer certos fenómenos mais ou menos explicadamente ou então perder alguns nomes de vista.

Há realmente muita oferta mas também porque a procura é bastante. Imagine-se a quantidade de festivais que existem em Espanha, a quantidade de salas em cada cidade (o circuito de concertos em Espanha chega a ser gigantesco), a crescente paixão dos espanhóis pela música independente – que faz encher salas especialmente em Madrid e em Barcelona. Este é um olhar que se debruça nas mais variadas áreas da música feita em Espanha. Os anos escolhidos são 2006 e 2007, em nome da actualidade. Esta é a prova que deita por água abaixo o ditado que afirma que de Espanha não chegam nem bons ventos nem bons casamentos. É também a prova que a música que se faz em Espanha vai muito para além do flamengo e da maior parte das xaropadas comerciais que nos chegam via Topes e rádios. A viagem é curta – afinal basta passar a fronteira – mas compensadora.

Remate No Land Recordings
2007
Acuarela / Popstock!

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O inglĂȘs imaculado de Fernando MartĂ­nez Ă© talvez aquilo que primeiro chama Ă  atenção neste disco. Mais tarde descobrimos que as suas palavras sĂŁo tambĂ©m interessantes, mas antes hĂĄ ainda tempo para outras descobertas. O facto de ser um disco duplo Ă© tambĂ©m um dos elementos que saltam Ă  vista, e o artwork cuidado igual. Na imensa viagem que representa este disco (isto de ĂĄlbuns duplos Ă© por vezes difĂ­cil de digerir) Ă© possĂ­vel descobrir uma sĂ©rie de grandes cançÔes (essencialmente construĂ­das por guitarras acĂșsticas ou elĂ©ctricas). Exemplos? A conduzida a piano “Dinosaurs”, a frĂĄgil e sonhadora caixa de mĂșsica “Love at first Sight”, “Fall” com marca Calexico e a simples mas eficaz “I’m against them All”. Isto no primeiro lado do disco.

Depois chega uma canção como “A singer on the loose”, perfeita nos seus pequenos e enternecedores riffs, no jeito de embalar e embrulhar emoçÔes. EstĂĄ a um passo de explodir e a um passo de se recolher ainda mais e acaba por nĂŁo sair desse meio-tom – e ainda bem. Por aqui imaginamos que Fernando MartĂ­nez conhece os Iron & Wine e os Silver Jews; em “Pain in Vain” confirmamos que conhece perfeitamente os discos de Bob Dylan e que guarda alguns com especial carinho. A voz de Fernando MartĂ­nez assenta na perfeição nestas cançÔes – este terreno Ă© fĂ©rtil. “Out of your skin II” Ă© mais rock que nunca, e depois Ă© cabarĂ©tica e depois, quase por magia, termina antes de chegar aos 2 minutos. “Propeller Beanie” Ă© provavelmente a Ășltima grande canção de No Land Recordings, intensa no seu recolhimento, centrada na sua mensagem: “I’l love to make a fuss / with the gild whom I choose / With the girl whom I refuse to loose”. Aproveitando a temĂĄtica, Remate jĂĄ saiu do campeonato espanhol e joga agora de igual para igual com escritores de cançÔes de outros paĂ­ses.

Sr. Chinarro El Mundo Según
2006
Mushroom Pillow

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Antonio Luque, o nome por detrĂĄs de Sr. Chinarro, banda que nasceu em 1990 em Granada (influenciada por bandas como os Cure, Depeche Mode e New Order), Ă© um indie resistente espanhol. Sim, isso mesmo. Desde 1994, o mĂșsico de Sevilha lançou jĂĄ para cima de dez discos e EPs. NĂŁo Ă© suficientemente conhecido para ser famoso, mas tambĂ©m nĂŁo Ă© suficientemente desconhecido para nĂŁo ter uma espĂ©cie de legiĂŁo de fĂŁs. El mundo segĂșn Ă© mais um disco com assinatura Sr. Chinarro mas nĂŁo Ă© apenas mais um disco. AlĂ©m de resumir na perfeição aquilo que tem vindo a fazer nos Ășltimos anos, El mundo segĂșn consegue ser provavelmente o seu disco mais consistente atĂ© Ă  data. CançÔes como “La decoracĂ­on”, com cheiro a Smiths e toque decorativo de cordas, e “Del montĂłn”, com palmas “flamencas” e sol, sĂŁo a prova que este nĂŁo Ă© um disco feito com a mĂŁo na cabeça e na razĂŁo mas sim com o coração nas mĂŁos. A voz de Antonio Luque, sempre em castelhano e por vezes peculiar, acaba por ser um ponto a favor dos seus temas. É provĂĄvel que a sua voz agrade mesmo aos que juram nĂŁo conseguir ouvir pop ou rock ou folk em castelhano. As cançÔes de Sr. Chinarro sĂŁo, neste El mundo segĂșn, construĂ­das com a sabedoria de quem jĂĄ leva uns anos nisto e continua a fazĂȘ-lo com prazer. Isso vĂȘ-se. SenĂŁo como escreveria uma canção como “No dispares”, de bem com o mundo e os mundos? Como resultado, El mundo segĂșn Ă© um disco de pequenas grandes cançÔes.

Agustí Martínez Are Spirits What I Hear?
2007
Etude

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Apesar de ter nascido em 1960 e de ter um passado considerĂĄvel na mĂșsica (fez parte de vĂĄrias bandas de jazz), Are Spirits What I Hear? Ă© o disco de estreia do mĂșsico avant-garde AgustĂ­ Martinez, catalĂŁo de nascença. A editora Etude, de Barcelona, nĂŁo exitou sequer em lançer mais um OVNI para o panorama musical espanhol. Are Spirits What I Hear? Ă© um conjunto de composiçÔes para o saxofone alto sem mais convidados, sem mais instrumentos, sem sequer a utilização de overdubs. SĂŁo dez paisagens monocromĂĄticas mas provocadoras de sensaçÔes distintas. O saxofone Ă© o maior e Ășnico personagem num disco onde AgustĂ­ MartĂ­nez aproveita para explorar diferentes tĂ©cnicas e abordagens ao instrumento. O catalĂŁo explora tambĂ©m abordagens emocionais distintas: do calmo ao explosivo, do sereno ao tenso, do belo ao feio pode ser apenas um segundo. HĂĄ de facto ruĂ­dos que nĂŁo associarĂ­amos ao saxofone utilizado de forma habitual (o tema “Are Spirits What I Hear?” Ă© exemplo disso), mas tudo parece surgir da relação com o saxofone, da sua livre exploração. É ele o centro das atençÔes. É ele que guia este disco pela escuridĂŁo e, em ultima instĂąncia, pela solidĂŁo.

Grupo Salvaje Aquí Hay Dragones
2006
Acuarela / Popstock!

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Esta banda de Madrid afirma andar a trabalhar para soar como os Blue Caps de Gene Vincent em 57 e que estĂŁo a trabalhar muito para o conseguir. Por enquanto editaram pela Acuarela o segundo disco de originais (sucessor de In Black We Trust, de 2003), intitulado AquĂ­ Hay Dragones, um disco negro e com paragens no deserto. HĂĄ por aqui Nick Cave e Giant Sand em doses justas. Mesmo quando partem de uma base acĂșstica acabam depois por deixar entrar a electricidade. Quanto mais nĂŁo seja a da voz de Ernesto GonzĂĄlez (que canta em inglĂȘs na quase totalidade do disco) escondida na face mais cavernosa que vem ao de cima. AquĂ­ Hay Dragones Ă© um disco algo misterioso e nebuloso – com fortes influĂȘncias psicadĂ©licas e de blues mortais. NĂŁo feito apenas de cançÔes mas tambĂ©m de instrumentais (“BarrabĂĄs” Ă© exemplo disso), para dar destaque especial Ă  coesĂŁo que estes mĂșsicos conseguem. Estes Grupo Selvaje sĂŁo coerentes e inteligentes – nĂŁo quiseram esticar a corda e começam e terminam o disco em pouco mais de 35 minutos. Intencionalmente ou nĂŁo fizeram de AquĂ­ Hay Dragones um disco bem mais forte na sua primeira parte que na segunda e Ășltima. NĂŁo Ă© um disco luminoso, nĂŁo Ă© um disco habitual em territĂłrio espanhol. E a madrilena Acuarela sabe disso. Se o primeiro disco dos Grupo Selvaje as dedicatĂłrias foram para Johnny Cash, June Carter, Sam Phillips e Joe Strummer, este AquĂ­ Hay Dragones tem como destinatĂĄrio o guitarrista Link Wray. Algo que faz perfeito sentido.

Bacanal Intruder Lulo
2006
Eglantine

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A belĂ­ssima inspiradora regiĂŁo das AstĂșrias (terra da fabada e da sidra) Ă© o local onde opera o jovem mĂșsico Luis SolĂ­s. Depois de alguns lançamentos em CD-R e em netlabels (inclusive na portuguesa Test Tube), o asturiano arregaçou as mangas e escreveu um disco editado fora de Espanha na francesa Eglantine – o seu primeiro em CD. Decidiu chamar-lhe Lulo e nĂŁo deu grandes explicaçÔes acerca do motivo. Tal como a capa do disco parece indicar, Luis SolĂ­s Ă© homem de mĂșsica gentil. Gosta de se rodear de piano e teclados vĂĄrios, melĂłdica, glockenspiel, harmĂłnica, guitarra espanhola, contrabaixo e, talvez o mais importante, do seu computador (alĂ©m de alguns convidados) e gosta de criar paisagens delicadas e na maior parte das vezes de grande beleza. O seu territĂłrio Ă© aquele em que a electrĂłnica e os sons acĂșsticos se cruzam. Terreno fĂ©rtil onde penetram vozes (femininas, “Soon for weekend” Ă© bom exemplo disso), e outras minudĂȘncias que enriquecem ainda mais a pintura. Descansa aqui nestas cançÔes uma boa porção de inocĂȘncia suficientemente ĂĄgil para se revelar bela e nĂŁo inconsequente. Folk que quer ser electrĂłnica, electrĂłnica que quer ser folk ou simplesmente folktrĂłnica. Intimista e com medo de sair da toca, cançÔes que querem (e por vezes merecem) ser tratadas como tesouros. NĂŁo existe sobreposição de elementos mas sim coesĂŁo – nem todos o conseguem. Este disco, melhor do que nunca, recria o quarto de sons que pertence a Luis SolĂ­s e que agora pode pertencer a quem se identifique com ele.

Niño y Pistola Como un Maldito Guisante
2006
Mulberry Records

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Da Galiza – mais precisamente de Baiona – chega uma banda com um nome algo bizarro mas com cançÔes nada duras de ouvido. Com o disco de estreia, intitulado Como un maldito Guisante, os Niño y Pistola dĂŁo mostras de uma pop acĂșstica que nĂŁo raras vezes vai beber aos escoceses Belle & Sebastian. Apesar do nome cantam em inglĂȘs. Apesar da ambiguidade do nome sĂŁo quase sempre dĂłceis. Dizem que a pistola de que falam Ă© de brincar e Ă© daquelas que os pais nĂŁo compram aos filhos com medo que estes se tornem criminosos. Tiveram a oportunidade de definir um caminho em duas maquetas e em vĂĄrios concertos e agora consubstanciaram a sua pop meia-luminosa-meia-despida que vem sem cinto de castidade. Quer isto dizer que Ă© pop a dar mostrar de inocĂȘncia mas com a matĂ©ria estudada. Este quarteto Ă© capaz de boas cançÔes pop: “Anyway (That’s Ok)” que Ă© equivalente a doçura acĂșstica. TambĂ©m os Beatles andam por aqui em todo o lado, mais ou menos disfarçados. “Anyway (That’s Ok)” entĂŁo estĂĄ cheia de referĂȘncias aos fab four - aqueles de Liverpool. Resumindo, ao longo de cerca de 35 minutos, sĂŁo alguns os bons motivos que tornam compensadora a decisĂŁo de entrar no mundo destes galegos, materializada em forma de estreia simpĂĄtica.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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