Antony + Cocorosie
Lux, Lisboa
10 Nov 2004
É compreensível que La Maison de mon reve tenha provocado reacções tão díspares. Não é todos os dias que somos convidados a partilhar de uma mesma sintonia onírica, tal como é pouco provável que alguém se sinta prontamente confortável ao ver-se rodeado por duas sereias num jacuzzi. Aos ouvidos de quem racionaliza a música por meio de infinitas comparações, o trip-hop camponês das Cocorosie perde o sentido. Apenas o compromisso de ingenuidade separa os cépticos do esplendor perfumado que as irmãs Cassidy espalham por onde passam. Para que o ultra-romantismo de recortes como "I once fell in love with you / just because the skies turned from grey into blue" seja devidamente apreciado, a tendência para a Inquisição ponderada terá de ficar à porta. De um Lux apinhado de gente, na passada madrugada de 11 de Novembro. Talvez não tenha sido premeditado, mas a música das Cocorosie - na sua sumptuosidade lúdica e embriagante - oferece a banda-sonora ideal a um dia de S. Martinho. Oferece também a alternativa silvestre aos que acorrem a sonoridades celestiais para se elevarem acima do solo. Os que rejeitarem a via sensorial terão sempre muito com que entreter a curiosidade, caso esta esteja mais interessada averiguar a capacidade das manas na emulação do disco em palco. A verdade é que conseguem-no categoricamente. Conciliar duas vozes que se complementam, a imprevisibilidade de um prodigioso human beat box e a maquinaria infantil resulta de facto, chegando mesmo a causar espanto. Dissolve-se no lubrificante do engenho o mel do registo de estúdio e dissipam-se as dúvidas, pois jaz na transparência da prestação ao vivo a chave para compreender a vontade das Cocorosie.

A quem já conhece todos os cantos à casa dos sonhos estão reservados os inéditos que apontam para um segundo disco - e aqui arrisco a futurologia - mais ambicioso a nível vocálico e fantasmagórico. Pelo menos, é para isso que aponta "Left hand shoe" - imediatamente reconhecível por meio daquele inquietante grito que sai da caixinha de Sierra (vestida a preceito para a ocasião: fato-de-treino Sean John, linha de roupa de P. Diddy). Já "Brazilian sun" - outro inédito - é percorrido sem metade que seja do encanto que emanou em Paredes de Coura, onde contou com a participação de Devendra Banhart e David Sitek dos TV on the radio (um luxo!).

Ao abrigo da música das Cocorosie o melhor vestido de Domingo (herdado da avó) que alguém trazia parece ainda mais gracioso. O seu efeito hipnótico é de tal forma eficaz que chega a ser possível arranhar o céu e voltar à terra visivelmente anestesiado. Não fosse ter sido tão semelhante ao espectáculo que ofereceram em Paredes e uma ou outra variante mal amanhada (a adulteração de "By your side" é um fracasso demasiado notável), e poderia ter sido uma noite inesquecível.

Antes das Cocorosie, houve tempo para os solilóquios de banco de jardim de Antony and the Johnsons (apenas um, nessa noite). É fácil simpatizar com alguém que fala tão abertamente sobre a sua paixão pelo filme "Women in revolt" e pela fotografia de Peter Hujar. Mais difícil será ceder à esquizofrenia e barroquismo latentes nas composições do promissor cantor queer. A julgar pela ovação, que o levou a voltar para "encore", pode estar aqui alguém merecedor de concerto em nome próprio por cá.
· 10 Nov 2004 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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