Festival Vilar de Mouros 2006
Vilar de Mouros
21-22 Jul 2006

1.º DIA

O mais mítico dos Festivais de Verão estreava-se em 2006 mas com um motivo especial de festejo: Vilar de Mouros comemorava não a 35ª edição do certame como muitos com certeza gostariam, mas sim as três décadas e meia do primeiro festival, a acontecer na vila minhota. A primeira edição do festival que muitos apelidam de “Woodstock português” acontecia em 1971, em tempos de ditadura. Em 1982, Vilar de Mouros, em plena democracia, voltava a ser palco de festa, mas foi só em 1996 que o histórico festival arrancou definitivamente. Vilar de Mouros estava então engalanado, orgulhoso e apostado em repescar muitos dos artistas que haviam já tocado nos mesmos palcos: Durutti Column, os Táxi, os Xutos & Pontapés.

Vilar de Mouros é então um festival onde muitos tentam recuperar uma certa adolescência perdida, mas nem sempre é assim, quer na plateia quer no palco. A prova disso era a primeira banda a subir ao palco principal do festival, os Vicious Five, ainda a passearem por solo nacional Up on the Walls, disco de estreia editado em 2005. Infelizmente, o que assina a este texto pouco mais teve senão a oportunidade de ouvir (e só mesmo ouvir) um par de temas ao longe que pouco deram para perceber da força aplicada em palco.

E porque se sabe que o primeiro dia em festival é geralmente o mais atribulado saltamos directamente para aquela que era provavelmente uma das actuações mais esperadas por alguns: a dos norte-americanos Mojave 3, liderados por Neil Halstead, com o último disco de originais, intitulado Puzzles Like You, debaixo do braço e com surpresas. É realmente significativo falar em Puzzles Like You se se referir logo logo depois que este não é um disco tipicamente Mojave 3. É um disco infinitamente mais rock, que deita um pouco para trás a delicadeza precisamente desértica da banda norte-americana.

Mojave 3 © Angela Costa

Quando mais temas de Puzzles Like You os Mojave 3 apresentavam mais se tornava óbvio que esse era o caminho mais adequado a seguir frente a plateia que sabia que de seguida ia ter os Xutos & Pontapés e os Sepultura em cima do palco. Ainda assim os Mojave 3 ousaram pegar em “In love with a view” e em “Bluebird of happiness”. Contudo, a menina dos Mojave 3 esteve um pouco fora de cena em demasia do que aquilo que se poderia esperar – chegou até a sair do palco. Finalmente, os Mojave 3, apesar da actualidade mais rock, funcionariam com certeza melhor actuando num palco rodeado de tecto e paredes que não deixassem sair aquela combinação de teclados e guitarras mas acima de tudo, a habitual beleza das vozes masculina e feminina, sobretudo quando seguem o mesmo caminho.

Em nota de rodapé informa-se que os Xutos & Pontapés e os Sepultura (mais os últimos que os primeiros) parecem ter cumprido, de acordo com as expectativas de cada um. De acordo com as expectativas e exigências de cada um.

2.º DIA

O segundo dia do festival de Vilar de Mouros começava mais ou menos a meio da tarde com duas notícias: a primeira a do lançamento de um documentário com co-produção MTV Portugal e RTP sobre os 35 anos de história do certame. O documentário conta com os testemunhos de músicos como José Cid, Miguel Guedes dos Blind Zero, Zé Pedro, Rui Reininho, Manuela Azevedo, ‘faladores’, divulgadores e escribas musicais como Henrique Amaro e António Freitas e até – pasme-se – de Narciso Miranda, que em meia dúzia de palavras se confessou festivaleiro inveterado. Resumindo, um testemunho essencial para se perceber a importância de Vilar de Mouros para aqueles que em território nacional seguiam em tempos algumas bandas como os U2 ou os Stone Roses (bandas em fases proporcionalmente inversas), para um rock português dos anos 80 em fase de desenvolvimento e, não menos importante, para uma certa consciência social e até politica. Contava-se até a certa altura o momento em que Vilar de Mouros se inicio nas aproximações ao metal, mas sábado não era o dia dedicado a essas linguagens.

A segunda das notícias era uma inesperada confirmação para o festival Vilar de Mouros 2007. Nos últimos anos a organização do festival pareceu quase sempre e em cada ano apostar num nome clássico: foi assim em 1999 com Joe Strummer, em 2000 com Robert Plant, em 2001 com Neil Young, em 2004 com Bob Dylan, em 2005 de novo com Robert Plant e em 2006 com Iggy Pop. Agora, em 2007, será a vez de Brian Wilson, o mítico fundador dos muitas vezes injustiçados Beach Boys. Mas continuemos agora em 2006. E com toda a actualidade. Com algum atraso em relação à hora marcada (17:00), os Dead Combo de Tó Trips e de Pedro Gonçalves aterravam na tenda do recinto e num cenário que não lhes é estranho: o da divisão do público entre a adoração e as bocas ocasionais mais ou menos sóbrios e quase rock ‘n’ rollescas, algo com que Tó Trips parece lidar na perfeição – o mesmo chegou até a dedicar uma canção àqueles que se referiu como “estes cowboys que estão ali”. Aliás, momentos de tensão e calma é algo que os Dead Combo parecem gerir muito bem, quer na música quer na relação banda/público.

Já cansa ‘atirar’ para cima dos Dead Combo chapas como western fado por isso aconselha-se o reservar de uma hora para escutar atentamente temas como “Pacheco” (do primeiro álbum), “Tejo Walking”, “Rua das Chagas”, “O assobio”, “Cacto” e tantas outras apresentadas neste concerto, muitas delas de Quando a alma não é pequena – Vol. 2, disco que confirma a força e crença da banda. Na secção das versões, duas curiosas escolhas: a primeira para “Like a Drug” dos Queens of the Stone Age (descrita por Tó Trips como uma espécie de “versão tipo restaurante chinês”), a segunda para “Temptation” de Tom Waits, com melhor desempenho na primeira. Um pouco por todo o lado, é possível sentir um pouco da Lisboa pintada pelos Dead Combo e perceber que esta dupla – já foi dito e redito – é das melhores coisas que aconteceu à música portuguesa nos últimos anos. Será ainda muito cedo para pedir um Volume 3?

Dead Combo © Angela Costa

Ainda na Tenda 1971 actuavam os Durutti Column do eternamente sugeativo e ‘polémico’ à sua escala Vini Reilly. Também ele teve de lidar com um cenário que já conhece: publico reduzido. Com um extra: os ‘cromos’ de festival que surgem sabe-se lá de onde e que chegam para ficar. Apesar das silenciosas mas curiosas aparições desses ‘cromos’, Vini Reiley, que subiu a palco com um baixista e com um baterista (que muito se destacou, tanto pelo sua idade elevada como pela exuberância da sua forma de tocar), nunca se desviou do seu propósito. Chegou a descrever a sua música como uma espécie de “foolish attempt to play the blues”, esteve sempre muito junto da sua guitarra, a também – mas menos – dos teclados e da voz. Fez a sua viagem por entre canções novas e antigas (entre as quais se destacou claramente “Otis”). Ainda hoje Vini Reilly deve sentir próxima a legitimidade de Tony Wilson, patrão da Factory Records, em parte 'culpado' por tudo isto. Vini Reilly foi, é e sempre será uma figura invulgar. Logo a seguir era tempo de fugir dos portugueses M.A.U., necessidade que surge só do simples facto de escutar ao longe um par de temas. Diz quem viu que cantaram Rod Stewart e que insultaram um dos maiores promotores de concertos em Portugal.

Durutti Column © Angela Costa

Entram em palco e mesmo quem não os conhece cedo ou logo lhes topa a pinta. Rock desmiolado mas cabeludo, riffs diabólicos ou ‘apenas’ hard. São os Datsuns, e entraram pela porta do rock revivalista via hard rock de biqueira de aço. Numa canção são os Led Zeppelin, noutra são os Deep Purple, a seguir são os Black Sabbath, “olha agora são os Stooges, “isto não é uma versão de Uriah Heep”? São tão inofensivos que se tornam apetecíveis, são um guilty pleasure para 20 minutos de sing-alongs, moshing, head-banging, crowd-surfing, air-guitar, entre outros. “Like a motherfucker from hell” será o mais hino dos Datsuns. Para quem ficou a pensar nos 20 minutos eu passo a explicar: os Datsuns correm o risco de parecerem chatos ao final de meia hora, por isso o melhor será aplicar-lhes a sentença de showcase. Pouco depois, no mesmo palco, e indo directamente ao assunto, o concerto dos Táxi esteve algures entre o entediante e o inenarrável. Algo indubitavelmente duvidoso, mal articulado, enfadonho. Não é de certeza esta a melhor imagem que o rock português dos anos 80 da mesma ‘gaveta’ merece.

Datsuns © Angela Costa

Depois o momento que marcou decisivamente o Festival Vilar de Mouros 2006, aquela que foi com toda a certeza uma das actuações mais históricas e explosivas dos 35 anos do festival minhoto: Iggy Pop & the Stooges, inigualáveis Stooges, como não, do mais do que lendário Iggy Pop, herói do rock/rock ‘n’ eroll/punk, a iguana, um dos tipos mais aventurosos que se conhecem em palco – e fora dele, para isso basta ler uns capítulos de Please kill me – The Uncensored Oral History of Punk, de Legs McNeil e Gillian McCain. No momento em que entraram em palco, uns mais calmos Stooges e um – como é habitual – enfurecido Iggy Pop, percebeu-se logo que o que ali vinha era caso sério e que os anos não tiram genialidade. Perante uns Stooges mais calmos, Iggy Pop, a entrar em palco em último lugar, mostra-se o mais selvagem que pode. Corre, salta, grita, uiva, sobe para cima de altas colunas, mexe-se, imortaliza-se uma vez mais, transforma-se ali mesmo em iguana; a mesma de que se fala em Trainspotting com todo o respeito, o mesmo com quase 60 anos mas força de um jovem de 22. Num momento em que os Rolling Stones andam também em digressão (e a engrossar as já volumosas contas bancárias), apetece dizer que Mick Jagger comparado com Iggy Pop é um menino.

Iggy Pop & the Stooges © Angela Costa

O início da actuação foi exactamente tão explosivo quanto se poderia prever. Ainda para mais com um arranque inicial que incluiu temas obrigatórios como “Down on the street”, “1969”, “I wanna be your dog”, “TV Eye”, “Dirt”. Avassalador, no mínimo. E como se a loucura em palco e na plateia não estivesse já há muito instalada (assim como o pó), em “No Fun” Iggy Pop convida o público a entrar em palco para uma caótica versão do tema, cantado a meias com os vocalistas improvisados vindos da plateia – algo verdadeiramente caótico e extremamente punk. “1970” e “Fun House” vieram logo a seguir e com elas também a impressão que os Stooges não estavam com muita vontade de pegar em Raw Power (e assim sofreram canções como “Search and destroy”, “Gimme Danger”, “Penetration” e claro “Raw power”). Mas dos três discos clássicos dos Stooges, The Stooges e Fun House serviram na perfeição. O tempo, esse, foi passando tão depressa quanto as grandes canções. Tudo em palco parecia estar perfeito. Existiu ali algo ali de insistentemente cru e directo, algo que resta dos primeiros concertos dos Stooges, a mesma teimosa, rebelde e insubordinada vontade de fazer e tocar rock sem tiques e modas. Os Stooges são ainda uns insurrectos.

Iggy Pop & the Stooges © Angela Costa

Num encore muito pedido pelo público (não se pode dizer português, porque o povo do festival parecia fazer-se metade de portugueses e metade de espanhóis – principalmente galegos), os Stooges voltaram para “Dead Rock Star” e “Electric chair”. Foram os dois temas que terminaram um concerto memorável, já aqui foi dito e volta-se a dizer: um dos maiores de sempre em Vilar de Mouros. Alguém que não conhecesse a figura diria que Iggy Pop estava agora mesmo a iniciar a sua carreira com os Stooges. O homem está fresco e poderoso como sempre. Iggy Pop e os Stooges são ainda uma incrível força da natureza. Uma daquelas que têm o nome assegurado na história da música, seja lá o que isso for.

Depois foi-se o pó e veio a calma. Tendo em conta tudo aquilo que se passou naquele palco principal seria quase impossível para Tricky estimular aqueles que ainda ficaram para a sua actuação. Fechou o festival Vilar de Mouros com pouco brilho, as canções foram-se sucedendo sem muitas alterações e com algum tédio. Tricky não parece, à semelhança dos Massive Attack dos dias de hoje, ser um grande triunfador ao vivo.

Vai-se lendo um pouco por todas as revistas e sítios de Internet que Paris Hilton manter-se-á “pura” e casta durante um ano e quase apetece dizer que Vilar de Mouros também. Mas ninguém se responsabilizará quando o calendário marcar o mesmo dia e o mesmo mês do ano seguinte. Quem sabe se a herdeira dos hotéis Hilton não escolhe o festival minhoto para voltar aos tempos de impureza.

· 21 Jul 2006 · 08:00 ·
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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