Murcof / Phoebus
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
28 Jan 2006
Não existe sensação de desamparo tão presente como aquela que sobre alguém se abate quando não reconhece imediatamente o sítio onde desperta. Entre conversas e copos, são mais que muitos os relatos que remetem para um mítico personagem local que faz desse despertar desnorteado um estilo de vida. Chamemos-lhe Bob (em vez do Abel, recorrentemente usado pela TVI). Deve-se a fama do Bob a ocasiões impressionantes como a subida das escadas de um prédio ao volante de uma mota, a quedas aparatosas infligidas por insustentável manutenção do equilíbrio (tal o estado de embriaguez) e a rudes despertares. A última tem como exemplo certa noite em que Bob foi esquecido por todos numa grande discoteca (entretanto encerrada), tendo despertado para o domingo entre portas fechadas e incomodado por um alarme que entretanto tinha soado assim que se aproximou da cabine do DJ. Mesmo que em surdina, Murcof estava lá. Pronto a auxiliar Bob no regresso a casa que constitui a reaquisição de sentidos.

Na passada noite de sábado, esteve também na Galeria Zé dos Bois – generosamente apostado em fazer desaparecer desgostos de memória recente (o 1-3 infligido pelo Sporting ao Glorioso pedia este tipo de medicina) para, consequentemente, ocupar o lugar do guia que estende estímulos minimalistas em auxílio de quem terá obrigatoriamente de cumprir um processo de reaprendizagem para caminhar de novo confiante. Só depois de recuperada a dignidade da posição vertical, Murcof acede a revelar o real peso da circunstância. Nem seja para, de novo, atirar o corpo ao chão e fazê-lo voltar à inconsciência da casa-partida. E assim é um noite passada na companhia de Fernando Corona: uma sujeição voluntária ao poder que tem uma mão direita (sobre um mouse) de conduzir a memória a um estado amnésico e resgatá-la desse.

Corona, que raras vezes quebrou o ar compenetrado perante o laptop, não é certamente o mais mexicano dos músicos afectos a essa pátria, mas os cenários projectados na ZDB em tudo apontam para uma Tijuana que salvaguarda toda a vilanagem de dar contas à justiça da Califórnia vizinha. Remembranza, o mais presente dos motes para a noite de sábado, ocupa-se essencialmente de sublinhar a distância emocional que separa alguém de qualquer referência cardial. Seja a confrangedora sensação de solidão provocada pela insuficiente espessura das paredes de um hotel que revela demasiado sobre as trocas de carinho nos quartos à volta. Penar pelas ruas de Puebla sem encontrar lugar seguro onde pernoitar e perceber que não serão os “Recuerdos” acumulados à viagem a servir de manto nessa altura (“Recuerdos”, que aliás, foi dado a conhecer numa inédita versão longa). Acordar com o lábio inferior assente sobre o areal de Puerto Escondido e tentar perceber o que terá levado a camisa envergada a ganhar um determinado odor a fumo de fogueira. Descobrir logo de seguida que o saldo bancário avançado por dois bolsos equivale a 12 pesos – quantia insuficiente para um regresso confortável a casa. É sobretudo nessas alturas que se revela útil o traço clássico de Murcof (presente nas cordas que rasgam o minimalismo). Encontra-se aí a coordenação que nos acompanha no percurso de regresso.

Antes das trips mentais proporcionadas por Murcof, actuou Afonso Simões, também conhecido por Phoebus, que, perante casa cheia, efectuou uma digressão por conceitos como a desintegração (de fita magnética?) e ambientes nostálgicos próximos dos explorados por Edgar Pêra em A Janela (Maryalva Mix). Tudo isto em registo áudio-visual minimamente manipulado ao longo de uma mão cheia de exercícios interessantes e demonstrativos de muito trabalho de casa.
· 28 Jan 2006 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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