Bob Dylan
Altice Arena, Lisboa
22- Mar 2018
A sala escurece num instante, salvo a ocasional flashada por parte de quem decidiu ignorar o pedido expresso para que se não tirassem fotos, e salvo as poucas luzes que se vislumbram em palco, que não deixam, dos balcões, que se perceba o rosto do Bob Dylan. "Do", porque "de" seria, talvez, demasiado impessoal. Ou porque poderia implicar que existe mais que um Bob Dylan. É que Dylan - mais concretamente, as suas palavras e as suas canções - são de todos nós, quer se seja um jovem operário com desejo de revolução ou uma tiazorra de Cascais excitadíssima com a perspectiva de ver Bryan Ferry e Khalid no Alive. É de todos nós, humanidade, património imaterial de milhares de povos, tal como a literatura e a poesia no seu todo.

Ei-lo, Nobel da Literatura, em Lisboa para apresentar versos e melodias, num concerto que se anunciou esgotado mesmo que se tenham vislumbrado várias cadeiras vazias, sinal talvez de que nem toda a capacidade da Altice Arena foi disponibilizada em forma de bilhete. Arranca com "Things Have Changed", tema bluesy de Modern Times (2006), que é também o mote para esta noite com o Dylan: ele mudou, e nós procuramos mudar com ele ao longo de todas estas últimas décadas. Para os mais velhos, que ocuparam a sala em maior número, é o símbolo de uma juventude ideológica e eléctrica; para os mais jovens, é uma figura que esteve sempre presente, como um pai. Tudo mudou no Dylan, e o mundo à sua volta acompanhou-o.

Só não mudou uma coisa: aquela voz, que tantos tentam imitar sem sucesso, e que muitas vezes não se percebe, deixando-nos intrigados. Será a garganta, ou a fraca acústica desta mesma sala? Talvez seja ambos, porque para além da voz há um volume incompreensível a sair do palco e um violino que mais parecia estar a matar um gatinho. Mesmo assim, "Highway 61 Revisited" cumpre o objectivo de nos transportar para uma América que já soa perdida, que esqueceu os seus ideais libertários e os substituiu pelo das grandes corporações, prédios arruinando o que outrora eram paisagens de fazer soltar uma lágrima ao hippie mais sóbrio.

Lisboa foi a primeira etapa desta nova digressão europeia do Dylan, pelo que haveria sempre a hipótese de o alinhamento ser mais variado que o das suas últimas apresentações nos EUA, em Novembro passado. Não o foi assim tanto, mas houve espaço para algumas surpresas; as versões de Sinatra e Tony Bennett ficaram de fora, entrou "Don't Think Twice, It's Alright", canção maravilhosa que arranca ao público sobretudo quieto a primeira grande demonstração de euforia. Uma canção que foi seguida pela mais recente "Pay In Blood", que mostrou que, mesmo com a tenra idade de 76 anos, o Bob Dylan continua numa forma invejável, acompanhado por uma banda exímia.

"Early Roman Kings", outra das "novas", mostrou o lado mais rockeiro do Dylan, indo buscar o seu riff e ritmo a "I'm A Man", de Bo Diddley, por via de "Bad To The Bone", aquela canção do Exterminador Implacável 2. Para desaguar em "Desolation Row" e, pouco depois, na única versão que se ouviu esta noite: "Why Try To Change Me Now", de Cy Coleman, momento em que o Dylan se ergue do seu piano e ocupa o centro do palco, porque a dor da canção a isso obrigava. O encore foi servido com uma dose de "Blowin' In The Wind", que praticamente ninguém no público reconheceu, seguida por "Ballad Of A Thin Man". E foi tudo: não falou connosco, não disse "olá" nem "adeus" nem "obrigado", não comentou temas da actualidade; bastou-lhe tocar durante duas horas de forma ininterrupta. É o Dylan, pá. Respeito.
· 23 Mar 2018 · 17:49 ·
Paulo CecĂ­lio
pauloandrececilio@gmail.com
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