Reverence Santarém 2017
Santarém
8-9 Set 2017
Dia Dois

Talvez o segundo dia trouxesse alguma bonança a um festival que não parecia estar para aí virado, mesmo que o sol se tenha erguido sem receio. Da zona onde os palcos foram montados, só saltou à vista a quantidade de casas à venda (ninguém quer morar em Santarém?), um jogo de futebol em juvenis e alguma caca de cavalo a adornar o chão que se pisou. E saltaram, pelo início de fim de tarde, os Camponeses - e também Chinaskee, que entram em palco com um trocadinho pateta («olá, Chinaskee, nós somos os Reverence») e de lá saem após meia hora de fuzz pop sem merdas, de um chafurdanço magnífico no lo fi e de umas quantas canções agradáveis, na mostra de um futuro que se fará com Malmequeres, álbum de estreia.

Eles saíram do palco a bem, mas os Underground Youth não; os britânicos, que eram uma das propostas mais interessantes do cardápio do Reverence 2017, muito por culpa do óptimo What Kind Of Dystopian Hellhole Is This?, foram avistados, no final, a discutir com os técnicos de som dado o tempo curtíssimo da sua actuação, incitando os resistentes ainda presentes nas grades às vaias. Antes disso, tiveram em palco uma bandeira búlgara, mostraram um rock n' roll negro e sedutor que deu vontade de arder lentamente na cama de um bordel, e fizeram com que despertasse no coração uma paixão arrebatadora pela coolness do seu baixista e pela beleza da sua baterista. Se o concerto em Santarém não encheu as medidas de uma certa intelligentsia que sabia e bem ao que ia, o reencontro está marcado para Novembro: Sabotage, Lisboa.

Numa busca incessante e inconsequente por uma Coca-Cola, apenas mais uma das muitas bizarrias Reverencianas (sim, a dada altura a Coca-Cola esgotou), escutamos ao longe os Siena Root a tocar um blues rock bacoco e sem grandes pontas por onde se lhe pegar, antes de soar a hora da paparoca. Regressamos ao palco principal pelos Träd, Gräs Och Stenar, banda histórica do rock progressivo escandinavo que ali esteve para mostrar como o sonho hippie pode ainda viver numa era de desespero. Nos suecos, o conceito de canção parece não existir; há, ao invés, uma procura por algo mais filosófico, poético, com recurso a longas jams instrumentais e libertárias que, como Kerouac, vão Pela Estrada Fora à procura de uma identidade muito própria. Num dos poucos momentos em que o Reverence foi Reverence, os Träd, Gräs Och Stenar provaram que a utopia existe se acreditarmos nela, Não é como a erva, que de qualquer forma, conduzindo, não poderíamos fumar durante o seu concerto.

Se no dia anterior os Wildnorthe foram uma surpresa, neste os Cows Caos foram-na maior. Entrando no palco vestidíssimos de branco, arrancando para um surf rock com saxofone e para uma onda mais relaxada, o espectáculo do grupo começou a tomar proporções épicas quando, à medida que a música avança, a odalisca que os acompanha vai tirando a roupa, apresentando os peitinhos a uma audiência que só estava à espera de uma desculpa para o rebarbanço. Mas tira-se a dançarina e fica o mesmo tom de festa, entre o surf e o lounge, entre um cabaret e o CBGB punk, e isso prova-se quando a mesma se digna a mostrar os ossos - ou um fato de ossos -, com a mesma ânsia da nudez.

Sem ânsias e sem pressas, os Gang Of Four, que para pelo menos duas pessoas foram o único motivo para vir ao Reverence Santarém, deram um concerto a roçar o triste onde apenas Andy Gill conferiu um certo grau de autenticidade à coisa e os restantes membros da banda presentes em palco nem sequer deveriam ser nascidos por alturas de Entertainment!, talvez o melhor álbum de rock comunista de sempre. O punk funk ainda levou alguns fãs mais extrovertidos a saltar e a gritar junto das grades, mas de resto apenas "Damaged Goods" se safou, assim como "At Home He's A Tourist" e a espécie de encore onde um microondas foi utilizado como percussão ou como crítica ao consumismo ou como homenagem aos Neubauten. Sobre a versão metade horrenda de "I Love A Man In A Uniform" é melhor nem falar. Nem sobre o, pasme-se, atraso de meia hora por causa do som.

Os Pás De Problème começam a dispensar apresentações, eles que por onde passam fazem, em poucas palavras, a puta da festa. Punk cigano, klezmer experimental, desvarios Kusturica ou uma nova roupagem dos Kumpania Algazarra, interessa lá o que eles fazem para além da loucura, da padrada, da alegria de viver. Num palco pequeno demais para tanta gente, os Pás De Problème conseguiram o que poucos ainda tinham feito: levar o público ao mosh, terminando com uma wall of death de tamanho reduzido e com muita, muita poeira no ar. Party hard. E, se eles foram a festa, os Mono foram a sua ressaca - uma ressaca tão bela quanto um filme de neve, ou não fossem eles os autores de uma das mais belíssimas canções do novo milénio, "Ashes In The Snow". O seu profissionalismo nipónico não pareceu ter sido afectado por mais uma sessão de problemas de som, e para o seu décimo (!) concerto em Portugal trouxeram toda a sua armada e camada sonora, deram autógrafos e ainda puseram uma lágrima no rosto de algumas pessoas. Não é preciso pedir muita coisa num concerto. Só este êxtase e este lembrete do porquê de gostarmos das coisas.
· 27 Set 2017 · 00:29 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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