Vodafone Mexefest
Lisboa
28-29 Nov 2014
Não, não vale a pena correr tanto como correm por aí. Há concertos essenciais, e há concertos que nunca o serão... e, no entanto, o Vodafone Mexefest voltou a espalhar a dúvida pelas mentes dos festivaleiros de inverno. E não só pelos festivaleiros, como se ouviu de um simples cliente da Casa do Alentejo, horas antes de se iniciarem os concertos: "porque é que não puseram aqui cante?". No meio das dúvidas, do saber a que concertos assistir, arriscamos dizer que a multidão acorreria em massa a um qualquer espectáculo de cante alentejano inserido no contexto do Mexefest, porque aqui o lhe parece interessar é a procura do hype; como acontece, aliás, em qualquer festival moderno. Daí que o Coliseu de Lisboa encha para ver os Tune-Yards e St. Vincent e deixe à míngua concertos de nomes vincados como os Clã. Mas adiante...

Numa noite em que se temia a chuva, virtude daquilo que se viveu pela capital escassas horas antes, foram os Pista a dar as primeiras cartadas, apresentando-se na Praça dos Restauradores, dentro dos estúdios improvisados da Vodafone.fm. O contexto era o do concurso promovido pela operadora e pelo festival, e perante alguns curiosos - já que para ver estas actuações kamikaze não era necessário pagar bilhete - o agora trio barreirense de tudo fez para acabar vitorioso e ter a hipótese de gravar um disco pela Pontiaq. Chamam-lhe pedalcore, apesar de mais se assemelhar a um vira em formato punk rock; e mesmo que não tenham colocado muita gente a mexer o pé, hão-de ter sido imortalizados em algumas selfies. Seguir-se-iam os Cave Story, banda oriunda das Caldas e que tem gerado algum burburinho, que não lhes ficaram atrás, com o seu pós-punk de riff cortado à faca e uma dose q.b. de psicadelismo. O que levou a que mentalmente concluíssemos porra, finalmente um concurso de bandas em que todas elas são minimamente boas. Para aquecimento, não se foi mesmo nada mal servido.

Começariam os concertos a sério já depois de um jantar apressado sob um símbolo maléfico, na rua do Coliseu (jantar esse que provocou uma incandescente azia, no dia seguinte. Não se recomenda, de todo). Os jj vieram até Portugal para apresentar V, título originalíssimo de um disco editado este ano, e que se seguiu a jj nº1, jj nº2, por aí diante. Pop sacra tocada no espaço mais óbvio - o da Igreja de S. Luís dos Franceses -, com a mui fofinha Elin Kastlander a deixar que a sua voz flutuasse no éter e o guna cigano-cristão que responde por Joakim Benon a acompanhá-la à guitarra, com os beats e a electrónica a serem disparados de um laptop por um terceiro elemento. It's my party and I'll cry if I want to, ouve-se, e lembramo-nos que os jj costumam fazer isto muito bem: resgatar snippets a canções distantes para formular uma pop electrónica delicodoce e animada, como que rappers twee a falar-nos directamente ao espírito. Pareceram tão espantados com o muito público como este com eles, agradecendo timidamente a sua presença e prestando-se a momentos de algum humor, como comprovou a t-shirt de Benon onde se lia "free jj", posteriormente atirada para o público. Escutou-se a maravilhosa "From Africa To Malaga" logo à terceira canção, antes de passarmos para "All White Everything", fazendo todo o sentido ouvir time to pray, time to say what's been on my mind..., antes de um encore que terminou com "Things Will Never Be The Same Again". Um concerto fabuloso num espaço que, por quase uma hora, foi deles e não de Deus. (Paulo Cecílio)

Seguimos para a Sala dos Espelhos do Palácio Foz para picar um pouco de Francis Dale, emergente artista português que, a julgar pelo EP de estreia, Lost In Finite, de 2013, nos traria uma interessante mistura de electrónica minimalista com soul, r&b e um pouco de blues. Infelizmente, e talvez por problemas técnicos (que também causaram um atraso no início do concerto), fomos presenteados com um espectáculo algo banal, assente sobretudo num blues simplista e pouco refrescante. Ainda assim, fica a nota de uma cover de "No Diggity" capaz de electrificar uma sala, e as pistas, ainda que remotas, de que estivemos perante uma promessa em potência. (João Morais)

Muito se esperava dos Tune-Yards de Merrill Garbus, que vinham até ao Mexefest com o estatuto de cabeças de cartaz não oficiais do primeiro dia, juntamente com Annie Clark. O que é certo é que a fúria festiva que encontramos nos discos do grupo norte-americano, nomeadamente em w h o k i l l e em alguns temas do mais recente Nikki Nack, não teve correspondência no Coliseu de Lisboa, naquele que foi um concerto excessivamente concorrido mas muito pouco caloroso. É certo que Garbus pouco pára em palco, mas às canções faltam-lhes aquela qualquer coisa ao vivo que consiga impulsionar o público para a imitação. O funk cru e tribal de "Sink-O", praticamente a abrir, ainda nos fez abanar um pouco o ventre, mas depressa a bonomia toma conta do espaço e nem "Gangsta" ou "Bizness", indiscutivelmente as duas melhores canções dos Tune-Yards, conseguem salvar um concerto do qual se esperava muito mais. Foi pena. Fica a nota de ter entusiasmado sobretudo a criançada; algumas até treparam pelos corrimões laterais... (Paulo Cecílio)

Foi na Garagem EPAL que encontrámos os australianos King Gizzard And The Lizard Wizard, num autêntico espectáculo de selvajaria musical: garage rock psicadélico, meio apunkalhado e bem condizente com o cenário, onde couberam flautas transversais, harmónicas a piscar o olho ao blues e muito mosh. E se dúvidas houvessem durante o concerto de que estávamos perante um bando de selvagens com jeito para a coisa, os quinze minutos de "Head On/Pill", carrossel de riffs sumarentos e distorção a rodos, deverão ter dissipado a desconfiança dos mais cépticos. Só fica a questão: mas o que é que andam a meter nas águas da Austrália? (João Morais)

Era um concerto especial, este que os Clã marcaram para o Vodafone Mexefest. Não só porque, em palco, teriam a presença de dois convidados que ajudaram a banda portuense na composição do seu último disco, Corrente, mas também porque, segundo explicou a sempre sensual Manuela Azevedo (com o devido respeito: que mulherão), era a primeira vez em vinte e dois anos de existência que os Clã tocavam na sala do Cinema S. Jorge. Exigia-se, assim, alguma atenção por parte da audiência; é lastimável, portanto, que pouco menos de metade da sala estivesse preenchida... e à medida que o concerto de St. Vincent se aproximava, mais vazia foi ficando. Um ultraje, dizemos nós. Porque, valha a verdade, mesmo sem qualquer espécie de adenda um concerto dos Clã seria sempre imperdível - estamos ou não estamos a falar de uma das melhores bandas pop que Portugal já pariu? Pese essa ignomínia, ofereceram aos resistentes um excelente concerto, iniciado com "Zeitgeist" e passando por "A Paz Não Te Cai Bem", canção amargo-doce sobre o desamor, antes de enveredarem um pouco pelo passado com uma versão em toada jazz de "GTI" e o assombro que é "Aqui Na Terra". Já com Godinho em palco para cantar "Curto Circuito" e "Artesanato", até para lembrar o óptimo disco em conjunto que é Afinidades, os Clã continuaram a mostrar a sua garra, tornada tempestade em "A Conta De Subtrair", a canção mais forte de Corrente, e também o respeito que granjeiam, quando o público se lhes junta para o refrão de "O Sopro Do Coração". Samuel Úria seria o outro convidado, acompanhando Manuela Azevedo e o cavaquinho de Hélder Gonçalves em "Canção De Água Doce" (para legitimar a carreira dos Clã, dizia...), antes de se atirarem a uma versão de "Teimoso" (do próprio Úria) interpolada com a enorme "Way Down In The Hole", de Tom Waits. "Rompe O Cerco", em jeito punk, e depois um público de pé para "Dançar Na Corda Bamba", poriam fim àquele que foi, passe a expressão, foda-se!, o melhor concerto do festival. Alguém que erga uma estátua aos Clã. Há muito que a merecem. (Paulo Cecílio)

Não há como negar que Annie Clark, a mulher por detrás de St. Vincent, chegou ao estatuto de cabeça-de-cartaz do festival com grande mérito, sendo inteiramente justificada a priori a enchente do Coliseu para a ver, e que terá sido a maior dos dois dias. Afinal de contas, estamos perante a artista que assinou, em 2011, Strange Mercy, um daqueles discos cheios de brilhantismo e que lhe abriu portas para que, em 2012, colaborasse com David Byrne. E ainda que St. Vincent, álbum lançado este ano, nos tenha deixado algo desapontados, a verdade é que só poderíamos esperar um grande espectáculo vindo daquela que nos últimos anos se tem afirmado como a verdadeira "diva dos indies". Mas a verdade é que, uma hora e meia de concerto depois, não conseguimos deixar de nos sentir um pouco defraudados. Talvez tenha sido do jogo de luz, fatal para epilépticos e capaz de atordoar o mais estóico dos elefantes, que tenha contribuído para a modorra em que caiu o concerto. A verdade é que se torna difícil arranjar desculpas que justifiquem este sentimento de vazio com que saímos do espectáculo de St. Vincent... e não deixa de ser incrível a seca que apanhámos, tendo em conta a quantidade de movimento e estardalhaço que se desenrolou em palco. Enfim, ao menos ainda levámos com "Surgeon" e "Cheerleader", tocadas costas com costas, e "Birth In Reverse" sempre deu para fazer estragos. Pode ser que para a próxima tudo corra melhor.

Já para Nigga Fox e Marfox as coisas correram bem mais de feição, e arriscamos dizer que os sets de ambos os DJs serviram para calar todos os cépticos que duvidavam que uma Noite Príncipe funcionaria no conceituado Coliseu. Os ritmos africanos, mesclados com os samples algo tresloucados - juraram-nos, a pés juntos, que se ouviram histórias de compras na China e contentores lá pelo meio - e com a electrónica abrasiva fizeram dançar um respeitável séquito de resistentes que se dedicou a partir chão até às quatro da madrugada, num espectáculo que teve o doce sabor da consagração daquele que é, cada vez mais, o novo som de Lisboa. (João Morais)
· 02 Dez 2014 · 18:20 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
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