Jazz em Agosto 2014
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
1-10 Ago 2014

James "Blood" Ulmer
A 31ª edição do ciclo "Jazz em Agosto", sito na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, privilegiou os guitarristas na respectiva programação, desde logo através da actuação de James "Blood" Ulmer (voz e guitarra eléctrica) na noite de abertura, 1 de Agosto, perante uma plateia esgotada no mítico Anfiteatro ao Ar Livre, acompanhado por outro intérprete de guitarra eléctrica, Vernon Reid, e pela Memphis "Blood" Blues Band composta por Charles Burnham (violino), Leon Gruenbaum (teclados), David Barnes (harmónica), Mark Peterson (baixo eléctrico) e Aubrey Dayle (bateria). A presença de Reid em palco e as interligações entre Ulmer e o universo criativo de Ornette Coleman apontavam para a possibilidade de uma experiência de fusão com linhas de blues, jazz e funk. No entanto, predominou uma linguagem mais convencional de blues eléctrico à John Lee Hooker que, não sendo entusiasmante, não assumindo riscos e não tendo capacidade de superação sensorial, acabou por se revelar tremendamente eficaz, a julgar pela reacção efusiva do público, talvez rendido de antemão à energia vital do septuagenário Ulmer, mestre da cerimónia. (Gustavo Sampaio)

© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Evan Parker & Matthew Shipp
Na segunda noite, 2 de Agosto, com menos público e alguns momentos de chuva miudinha, imperou a música jazz propriamente improvisada pelo dueto que junta o pianista Matthew Shipp ao saxofonista Evan Parker. Exceptuando os minutos iniciais de adaptação às circunstâncias, em busca das tonalidades mais consentâneas, ao que se acresceu o ruído da tradicional passagem de aviões por cima do palco, sobrepondo-se por vezes aos solos, a viagem sensorial foi impressionante. As linhas sonoras de Shipp e Parker ora se atraem, ora se repelem, por entre sucessivas colisões de linguagens abstractas, imaginadas, improvisadas através de uma incrível destreza técnica, capaz de se desdobrar em múltiplas experiências que produzem novos elementos, novas possibilidades, novos horizontes poéticos. Como Shipp descreveu em entrevista ao Bodyspace, trata-se de uma forma de "linguagem dos deuses", com ritmo e harmonia, "mais próxima dos sentimentos e emoções do que a linguagem discursiva". Tanto nos momentos de conjugação entre os dois músicos, quanto nos solos, igualmente vibrantes e poderosos. Foi um concerto memorável. (Gustavo Sampaio)

© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Marc Ribot Ceramic Dog
Após ter tocado na edição 2013, acompanhando John Zorn, o guitarrista Marc Ribot levou à Gulbenkian o seu próprio grupo, Ceramic Dog. Entre o jazz e o rock, Ribot explorou riffs intensos a meio caminho entre o jazz e o rock, sem se assumir plenamente em nenhum dos campos. A abordagem do clássico “Take 5” de Brubeck (segundo tema do alinhamento) foi representativa da postura do trio: por um lado, há uma matriz que é respeitada, por outro lado, essa tradição é transformada sem medo, electrificada. (Nuno Catarino)


© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Marc Ducret Real Thing #3
O guitarrista francês Marc Ducret levou à Gulbenkian o grupo Real Thing #3, parte do projecto “Tower”. Com inspiração em Vladimir Nabokov, Ducret apresentou uma música assente em composição milimétrica, aplicada a uma formação fora do comum: três trombones, piano e vibrafone, além da guitarra-âncora do líder. Se a inclusão de piano e trombones amplificava a vertente camarística, outras vezes a música viajava para outros mundos – os momentos de diálogo guitarra/vibrafone quase soavam ao pós-rock dos Tortoise. A guitarra de Ducret estava no centro de tudo, mas era utilizada em apontamentos subtis, sem se fazer notar em demasia. Os melhores momentos ouviram-se quando se assistiu a uma maior coesão instrumental. (Nuno Catarino)

© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Luís Lopes Lisbon Berlin Trio
Em contraponto com a noite anterior, a actuação do Lisbon-Berlin Trio foi marcada pela simplicidade de processos. O grupo de Luís Lopes (guitarra eléctrica), Robert Landfermann (contrabaixo) e Christian Lillinger (bateria) apresentou uma música enérgica, baseada no feedback e distorção da guitarra. A bateria de Lillinger esteve particularmente incisiva, disputando o protagonismo com a guitarra diabólica de Lopes. O contrabaixo de Landfermann esteve menos em evidência, mas mostrou-se eficaz ao complementar o trio. Sempre no vermelho, o trio terá pecado apenas ao abusar da intensidade sónica. (Nuno Catarino)

© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Franz Hautzinger Big Rain
O quarteto Big Rain reuniu no auditório da Gulbenkian quarto músicos atípicos: o japonês Keiji Haino (guitarra, voz, objectos, electrónica), os americanos Jamaaladeen Tacuma e Hamid Drake (secção rítmica, baixo e bateria, respectivamente) e o austríaco Franz Hautzinger (trompete, líder do grupo). Tacuma e Drake criaram desde logo um tapete de “groove”, sobre o qual entraram os restantes músicos. Haino começou por usar a guitarra eléctrica (depois serviu-se da voz e de objectos) para estilhaçar qualquer ideia de harmonia, emitindo os seus gritos como se se tratasse de um espírito maligno. O líder e trompetista mostrava uma postura “laid back”, à Miles Davis, deixando os músicos tocar à vontade, intrometendo-se apenas em esparsas intervenções (por vezes com o som do trompete processado com efeitos electrónicos). Estranhamente, a união destas quatro personalidades musicais resultou surpreendentemente bem. Em vários momentos a união colectiva funcionou e o resultado musical foi imensamente rico. (Nuno Catarino)


© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Frith / Léandre / Drake
Num encontro inédito, o Jazz em Agosto acolheu a actução do trio constituído por Fred Frith (guitarra eléctrica), Joëlle Léandre (contrabaixo) e Hamid Drake (bateria/percussão). Frith e Léandre tocam juntos e integram o MMM Quartet (que tocaria no dia seguinte), a inclusão de Hamid Drake seria a novidade. O trio começou por desenvolver um demorado trabalho de pesquisa, na tentativa de encontrar fios comuns. A guitarra de Frith mostrou-se sobretudo ambiental, pouco riffeira, também para não abafar os outros. Léandre revelou-se sempre precisa nas intervenções no contrabaixo, acrescentando ainda vocalizações interessantes. Drake fez um óptimo trabalho rítmico, ainda que não se tenha mostrado muito. No conjunto, foi uma actuação representativa da melhor improvisação, tendo o trio conseguido alcançar alguns momentos sublimes. (Nuno Catarino)

© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

MMM Quartet
O MMM Quartet reuniu Joëlle Léandre e Fred Frith com Urs Leimbgruber (saxofones) e Alvin Curran (piano e electrónica). Ao contrário da noite anterior, estes músicos dispensavam o trabalho de pesquisa, com a comunicação a ser mais fluída e orgânica. Contrabaixo (e voz), guitarra (muitas vezes percutida com objectos), saxofone e piano (e electrónica) desenvolviam uma música que evoluía rapidamente, ancorada num forte sentido comum. A música crescia e qualquer intervenção tinha respostas e continuação, num magnífico trabalho colectivo. Mais do que evidenciar qualquer intervenção de um músico em particular, esta actuação valeu pela força do grupo e pelo óptimo trabalho comum. (Nuno Catarino)


© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Massacre
Se é verdade que Fred Frith foi uma das grandes figuras desta edição do Jazz Em Agosto, tendo subido ao palco do anfiteatro ao ar livre durante três dias seguidos, no encontro com os Massacre viu-se obrigado a ceder o seu lugar de destaque a Bill Laswell. Foi o baixista quem ditou as regras do encontro a três, impulsionando a fusão entre dois espíritos - os demónios do punk e os cientistas da improvisação - através do groove que circulava do seu baixo eléctrico (com quatro ou seis cordas), que ora nos abismava ora nos puxava para a ginga, enquanto o guitarrista lhe juntava pequenas poeiras de barulho bom e Charles Hayward ia marcando o ritmo como podia, auxiliado igualmente a espaços por uma melódica que, infelizmente, nada de interessante trouxe à música, mas já que o som do dub é o som do verão, perdoemos-lhe. O momento de descanso antes de se lançarem ao último tema disse tudo: Laswell abanando a mão direita, queixando-se de dores nos dedos. Ser grande tem destes problemas. (Paulo Cecílio)


© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

L.U.M.E.
O Lisbon Underground Music Ensemble, liderado por Marco Barroso, levou à Gulbenkian a sua música de big band esquizofrénica. A excelente orquestra, que reúne alguns dos mais interessantes instrumentistas nacionais, sabe condensar uma sólida base jazz com energia da dinâmica free e da improvisação. As composições de Barroso conciliam de forma inteligente esses diversos universos e o grupo interpreta os temas com grande expressividade. Individualmente será justo referir a qualidade de alguns solos, especialmente as intervenções de Paulo Gaspar (clarinete), José Menezes (saxofone) e Gonçalo Marques (trompete). O Jazz em Agosto encerrou com um óptimo espectáculo de um dos mais originais projectos musicais portugueses. (Nuno Catarino)

© Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian​
· 11 Ago 2014 · 23:19 ·
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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