Milhões de Festa
Barcelos
27-27 Jul 2014
Milhões, quando os nossos corpos se separaram olhámo-nos quase a desejar ser felizes. Fizeste-nos mal o ano passado: desapontaste-nos como um filho desaponta os seus pais, traíste-nos como uma amante enriquecida pela vaidade. O teu 2013 quase que nos fez chorar - como foi possível, como foi possível -, enlutámo-nos, esconjurámos-te, passámos pelos cinco estágios do modelo de Kübler-Ross e para quê, para quê tanta miséria e tanto sofrimento mútuo, se quando chegamos à tua casa quase que sorrateiramente, no último dia em que te podíamos dar um beijo de despedida, e tu, como se o houveras esquecido, nos devolves todo o amor que nos alimentou as memórias durante estes últimos anos? Rasguemos os papéis do divórcio. Peçamos perdão uns a outros. Não é altura de nos morrermos. Estás de volta e nós ajoelhamo-nos como se nunca houveras partido. Dia 27 de 2014 ficará para a história não só como o fim de um ciclo já decretado mas como o início de algo tão perturbante quanto belo, tão inequívoco quanto misterioso. Eis a bonança, eis o ambiente que sempre quisemos, eis os concertos que nos atarantam e fazem tremer a espinha: isto é o Milhões de Festa em todo o seu esplendor, e o passado um animal grotesco.

Animal ou a-nimal, que um deles nos safa uma boleia meio à última para de novo nos atirarmos em direcção ao regaço de Barcelos e à festa bonita que é o festival mais cool do Minho, mais exótico de Portugal e mais maravilhoso do mundo inteiro. A convidativa piscina dá o mote com Duquesa, Nuno Rodrigues dos Glockenwise, scumbag transformado em douchebag com aquele jeitinho auto-depreciativo que só ele tem, anunciando primeiramente em surdina pré-concerto que a voz lhe falta devido a situações ocorridas na noite anterior (e lamentamos desde logo não ter vindo) e durante o mesmo que nem a sua namorada está a ligar alguma, enquanto desfila as canções que fazem do seu primeiro registo algo de extraordinário; a pop a gostar dela própria, a riqueza naïf de "Ice Cream" e "Abade Nation" a abrir a tarde. Os Jack Shits trazem depois a sujidade da garagem rock n' roll para o meio das toalhas e dos mojitos e colocam alguns verdadeiros a entoar "Gloria", dos Them (imortalizada pela tia Patti), com referências a "Land Of A Thousand Dances" lá metidas pelo meio (sim, o na na na vem de algum sítio) e uma atitude deliciosamente punk, antes da electrónica suave de Zacarocha amenizar o espaço e a festa de contornos femininos das Thug Unicorn colocarem imensa gente fora de piscina e em frente ao palco, esquecendo o esbracejar mariposa pelo gingar da anca - e arrancando-nos uma vénia quando no meio do hip-hop surge o tema de abertura das Navegantes da Lua. Isto sim, são Milhões de Festa.

O melhor, contudo, viria só pela calada da noite, após o duelo semi-provável e eléctrico entre as guitarras de Filho da Mãe e Norberto Lobo, com subidas e descidas de entusiasmo musical mas regra geral aplaudidíssimo, após as canções sintetizadas da bonita Sequin, após o tributo a Zola Jesus feito pelos Young Magic e após o desfile em tons africanos das guitarras dos Jagwa Music (não confundir com Jagwar Ma). Falamos dos Earthless, pois claro, o nome requisitado há tempos que parecem séculos, a banda que o Minho deveria receber todos os anos e outros tantos, o power trio que nos leva a declarar Isaiah Mitchell um Deus maior que Jimi Hendrix o foi. Algures no headbanging haveremos de ter perdido as palavras, palavras essas que os Earthless recusam, preferindo fazer uma gigantesca muralha de som ácida falar por si e desfilando três temas que parecem jams mas está tudo tão calibrado, tudo tão certo e estimulante, que nos perguntamos como é que aquelas cabeças contêm tanto mundo dentro delas. Um mundo em que viajam a cada riff, a cada aceleração, nas poucas pausas que os próprios se permitem - para serem de imediato brindados com estrondosas ovações - e no largo sorriso daquele guitarrista que certamente veio até Portugal montado numa estrela cadente. Foi o melhor concerto do festival, e por festival entenda-se toda e qualquer edição deste festival em particular; nunca o Milhões voltará a ver uma coisa assim. E nunca no Milhões uma banda se sentirá tão amada como o foram os Earthless, que retribuíram com uma canção para além das três, já o palco se preparava para se despedir deles: "Cherry Red" e seus curtíssimos quatro minutos trouxeram de volta o ritmo de um céu cósmico para que, agora sim, pudéssemos acenar aos norte-americanos em tons religiosos. Melhor banda do mundo. Melhor. Banda. Do. Mundo.

Os Night Beats tiveram a tarefa inglória de subir ao agora palco Vodafone após o estaladão rock que havia passado pelo principal - e muitos de entre os que lá estavam pura e simplesmente rejeitaram ver o que quer que fosse naquele período francamente pós-coital -, mas os Melt Yourself Down aceitaram o repto e voltaram a colocar o "Festa" em "Milhões de Festa" e fizeram com que os sobreviventes à passagem do furacão dançassem ao som de saxofones a ferver, groove a jorrar como água e de um MC em pleno transe. Os britânicos vieram apresentar a sua característica mistura de jazz, punk, afrobeat e o que mais caiba e não hão-de ter deixado indiferente quem quer que fosse. Malhas como "Fix My Life", "We Are Enough" ou "Camel" nunca o permitiriam. Dos Frikstailers e de Nigga Fox pouco existe para contar, ainda que o último nos tenha feito abandonar o cansaço e o preconceito quando se escuta não faiz isso bé-bé-bé-béla bem pertinho do palco. O que há para dizer, muito sucintamente, é: obrigado, Milhões, por existires. Para o ano conta connosco novamente, não apenas num dia de descoberta, mas em quatro de romance. Amar-te-emos para sempre.
· 02 Ago 2014 · 17:01 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
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