Orelha Negra
Cinema São Jorge, Lisboa
28 Out 2010
«Eles são cinco… Orelha Negra!» - anuncia-se ao início. Eles são um Quinteto Fantástico, apetece acrescentar. Heróis da música negra (a mãe de todas as músicas, afinal), com referências à realidade portuguesa.

É com esta Memória – em que ancoram o seu projecto – que iniciam a noite, que será pautada por saltos temporais entre um passado onde caíram as sementes, o futuro de horizontes largos e um presente irrepetível.

Após a intro de Common, segue-se Barrio Blue, com o beat composto por “so much joy!” e Cruzfader a dar cartas no scratch.

Ninguém canta, ninguém se mexe no palco. Mas em Lord é como se a sala não tivesse cadeiras e o público fosse possuído pelo poder do gospel.

© Patrícia Costa

O primeiro medley começa funky, com samples de metais e as teclas de João Gomes (ou Gómes Prodigy) a marcar o compasso. Ouvem-se os Deee-Lite cantar “i wouldn’t ask for another” e proclamar “groove is in the heart” – mas não é só no coração dos junkies que está o groove; ele pulsa dos ouvidos para os corpos, num fluxo contínuo. Can’t touch this, avisa MC Hammer, e continua a ser Orelha Negra Time. A conjugação entre a matéria-prima samplada, o scratch de Cruz, as routines de Sam “Mira Professional” the Kid no MPC, a forte batida de Fred “Ferrano”, as teclas e o baixo de Francisco Rebelo “Jazz Bazz” faz pensar num quinteto de jazz. Cada um toca para seu lado, numa rica paleta de cores e texturas, mas tudo se encontra na mesma tela, formando uma composição tridimensional. Felizmente, o auditório não tem que utilizar óculos para apreciar o espectáculo em todo o seu esplendor.

Terá sido A força da razão a esgotar a lotação do São Jorge ou são as volúveis emoções que prevalecem? Um concerto é sempre um jogo entre a entrega dos artistas e a reacção do público, e numa actuação destas é o calor dos sentimentos trocados que fala mais alto.

Contas químicas feitas, “let’s travel into the future”. É este o final da intro de Futurama. E não só o futuro como o presente são tempos risonhos para os Orelha Negra e vários outros projectos lusos que abundam, uns com mais outros com menos notoriedade. Vivem-se tempos invulgarmente fecundos no nosso panorama, talvez para compensar as crises que subsistem noutras áreas.

Há qualidade, originalidade e (finalmente!) um circuito de salas de média dimensão para as bandas exporem o seu trabalho ao vivo, na presença dos fãs.

“Sweet love” é a cadência repetida a seguir, como uma prece, uma oração… ou talvez como uma declaração ou manifesto amoroso. A bateria funciona como resguardo para o baixo se passear livremente pelos lençóis e depois subir, como um foguete, num crescendo extático que se retém até à explosão final.

© Patrícia Costa

Isto é música para concerto, em sala ou festival, para curtir numa pista de dança ou nos phones enquanto se deambula pela rua, para fazer amor ou sexo, a qualquer hora.

E estes são músicos de excepção. Não só virtuosos executantes como criativos que não se limitam a transpor o disco para o palco. Arrancam camadas sobre camadas de verniz aos temas, fazendo estalar a pintura com a garra que neles depositam.

Tempo para (mais) dois momentos intensos: repete-se “Que Deus o tenha em descanso”, possível tributo ao malogrado Snake - MC cobardemente assassinado em mais um caso de desmando policial gratuito que, espera-se!, não acabe na gaveta dos “arquivados” -, e depois a apaixonada Miriam, romântica como só os amores não correspondidos o são.

Noutro medley, após mais um show de scratch, as teclas sugerem uma paisagem sonora clássica, mas o cenário bucólico é esfrangalhado pela carga duma batida cada vez mais irada – o que será acentuado pela dica dos Public Enemy: “hear the drummer get wicked!” – welcome to the terrordrome…

Blessed traduz na perfeição aquilo que a plateia sente pelo privilégio de assistir à performance. É nítida como água a evolução do grupo em relação aos primeiros concertos. Estão mais coesos, com um power de fazer a casa vir abaixo e os vizinhos ligarem para a policia.

© Patrícia Costa

Estes cinco têm A cura para quase todos os venenos que atacam o espírito. Nem que seja à moda dum western spaguetti, arma na mão, sete passos atrás e apontar aos pontos vitais dos enfermos.

Pausa e encore. Saudade, com introdução acompanhada pelas palmas do público a compasso, e novo exercício extra-curricular. Samples de Nneka, bateria a galope, intervalada por momentos para respirar fundo, sob teclas que inspiram os ares de África e expiram frescura cosmopolita. E novo crescendo, antes do exercício terminar na paz dos anjos.

A última música é We’re Superfly, uma das mais dance floor friendly do álbum de estreia, mas depois ainda se pede “Quero ouvir barulho! Mais barulhooo!!”. E este barulho é mem’bom, porra!

O gig termina com feedback (nem o sistema sonoro resistiu a tanta vibração) e uma ovação de pé inundada por palmas que trazem os músicos à boca de cena. Agradecem, agarrados uns aos outros, com uma vénia, como se tivéssemos acabado de assistir a uma peça de teatro.

Nós é que agradecemos aos actores. Música desta penetra pelas orelhas e entranha-se como areia fina nos lugares mais recônditos do ser. Soul food is the healing of the nation!
· 01 Nov 2010 · 12:00 ·
Hugo Rocha Pereira
hrochapereira@bodyspace.net
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