Beach House / Jana Hunter
Maxime, Lisboa
16 Nov 2008
Sem estatística exacta que o comprove, o Domingo é o dia da semana que mais se parece com uma página em branco para quem perde os dias úteis com um horário das 9 e às 5. O aspecto vago do Domingo só contribui para que sejam ainda mais indesejáveis alarmes como a campainha e o telefone que toca para dar voz a alguém que vende ou a alguém que simplesmente chateia. Por defeito, o Domingo é um dia que sugere hábitos sedentários e o escarafunchar de orifícios acompanhado pelo visionamento parcial de más produções da Disney. Contrariar essa tendência de hibernação, rumando ao Cabaret Maxime num serão de Domingo, só pode ser devoção. Devoção essa que acabou por ser generosamente devolvida pelos protagonistas da noite: a dupla de fabulosos ilusionistas Beach House, Jana Hunter e um baterista discretamente polivalente (no contributo oferecido a ambos os nomes). Para mais, a Avenida da Liberdade nesta altura do ano ganha um brilho caracteristicamente piroso. Aquele efeito de degelo perturba a minha condução, mas tudo se desculpa a bem da devoção.

Jana Hunter © Vera Marmelo

Nem tudo se desculpa, mesmo assim, aos que precipitadamente tentaram enlatar Jana Hunter num recipiente (freak/free) folk , como se fosse essa a pena a que está obrigado quem, muitas vezes por acidente, merece o apadrinhamento de Devendra Banhart (e um lugar na sua label Gnomonsong) . Silenciando de imediato a plateia, que encheu por completo o Maxime, Jana Hunter reduz a pó a validade dessa tipificação folk com a interpretação solene de canções que devem a uma espiritualidade de alpendre tal como à experiência de quem já perdeu as contas às cambalhotas do conta-quilómetros pessoal.

Iniciando o intimo ritual limitada a voz e guitarra, a autora de Blank Unstaring Heirs of Doom prova que a maturidade de uma canção não se mede pela cartilagem que lhe é acrescentada. Reduzida à sua matriz e privada das cordas que a adornam em disco, “A Goblin, a Goblin”, em dueto com Victoria Legrand dos Beach House, passa a ser ainda mais eficaz no seu retrato triste de um ogre metaforizado. Sobre a mudança de visual por parte de Jana Hunter, houve quem referisse que deixou de ser a amiga original para passar a ser mulher dorida (o rosto recorda cada vez mais a actriz de culto Zara Quiroga). Antes de terminar, a própria revela que se avizinhava uma transição no ânimo da romaria e, sem tempo a perder, conduz o trio entretanto formado em palco (com Alex Scally dos Beach House e um baterista talhado para a tarefa) por um rock de bar aceleradinho bem à americana.

Beach House © Vera Marmelo

O desejado abrandamento (era Domingo) haveria de ser servido, logo de seguida, pelos Beach House, num inesquecível serão que marcava a estreia do duo de Baltimore na capital (após passagem por Portalegre e antes de rumar ao Porto). Polindo a canção como um talismã há muito armazenado, os Beach House precisam apenas de uma guitarra e de um teclado para estabelecer uma via de comunicação simplificada com os corações atraídos pelo apelo nostálgico (passe o cliché) e riqueza melódica desta música. Num estalar de dedos, evaporam-se todas as dúvidas acerca da fiabilidade dos Beach House na transposição para palco da instrumentação onírica que trouxe firme culto aos dois discos: o teclado de Victoria emula na perfeição os sons antecipadamente adoptados, muitas vezes sem necessitar mais do que a carícia da mão direita da deslumbrante moça. A mesma evaporação faz desaparecer as fronteiras entre os dois álbuns (Beach House e Devotion), que passam a ser siameses simétricos quando é imperceptível qualquer desnível entre a intensidade contida de “Apple Orchard” e a extensão lunar de “Turtle Island” (sério candidato a momento da noite).

Mais impressionante que isso é reparar que os Beach House possuem um sentido de humor que serve aos intervalos entre temas como o sapato à Cinderela: Victoria confessa a suspeita de que se encontra rodeada por espíritos de mulheres nuas no palco do Cabaret, Alex adianta que será alto o valor a pagar no futuro pelas camisas sujas que abafaram a bateria e tornaram dormente o inédito apresentado bem perto do final do concerto. Acrescente-se também a boa vontade demonstrada pelo duo na revelação trivial da natureza emocional de grande parte das músicas: umas adequavam-se aos apaixonados, algumas aos desgostosos de amor e outras ainda serviam apenas para confundir.

Beach House © Vera Marmelo

Como se isso não bastasse, após sucessivos pedidos por parte de alguém particularmente chato entre o público, os Beach House acedem a preencher um segundo encore com a quase-valsa “Auburn and Ivory”. Tal como no início, a imaginação perde-se nas diferentes faces de um diamante que reflecte reminiscências de castanho-avermelhado e marfim, corações despedaçados e rabos-de-cavalo. Cada um é o que sonha ao abrigo da casa de praia.
· 18 Nov 2008 · 20:27 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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