Mari Boine
Festival Sons em Trânsito, Teatro Aveirense
30 Nov 2003
O palco foi seu, desde o momento em que o pisou. Mari Boine Persen, eis o nome da senhora que no passado domingo encerrou, de modo imponente, o festival Sons em Trânsito, que decorreu na cidade aveirense de 20 a 30 de Novembro.

Aos quarenta e sete anos de idade e com mais de vinte de carreira – durante a qual se pode contar a edição de álbuns como Gula Gula (1989, primeira edição internacional), Eagle Brother (1993), Lehakastin (1994) ou o mais recente 8 Seasons (2001) –, Mari Boine, juntamente com a sua banda, apresentou a um público heterogéneo e atento uma das mais estimulantes experiências que se podem viver num tempo-espaço ao qual alguém decidiu um dia chamar de «espectáculo».

O gelo e o fogo em canto. Foi deste modo que alguns media nacionais apresentaram Mari Boine dias antes do concerto, não se encontrando longe de preverem o que se sucedeu em palco naquela noite, naquele encantador teatro. Foram, e disso não há dúvidas, o gelo do norte da Noruega e, simultaneamente, uma fonte de calor saído da voz e do corpo de Boine que, suportados por uma variada instrumentalização sabiamente manejada, sobressaltaram o palco durante as cerca de duas horas que o espectáculo teve de vida.

No último fôlego da sua mais recente digressão, a embaixadora da cultura sami (cultura ainda hoje viva no norte dos países escandinavos) - que começou a fazer música e a cantar como forma de terapia - presenteou ao público o canto joik, sobre composições fortemente dominadas pelas percussões, por instrumentos de sopro como a flauta e o saxofone, por uma guitarra, por um baixo ou por um charango. Música do mundo, chamar-lhe-ão alguns. Se realmente considerarmos um cocktail no qual se fundem ingredientes aparentemente tão díspares como os blues acústicos, o rock progressivo, o jazz, a folk ou as electrónicas com cânticos de teor religioso enquanto objecto universal, então o que Mari Boine e a sua banda levaram a palco naquela noite poderá ser considerado música filha do mundo. É desta fusão, assente na ponderação entre a tradição e as novas linguagens electrónicas, que se constrói esta música tão peculiar e que, ao vivo, se torna maior.

Desde a introdução a solo ao tema final, «Eagle man/Changing woman», passando por temas tão surpreendentemente vivos em palco como «Gula Gula», «Butterfly», «Celebrate the new born» ou «Come with me to the secret mountain» (alguns interpretados em inglês, outros em linguagem joik), Boine e a banda – e é importante não esquecer a sua omnipresença e o seu relevo – foram conquistando um público que, ao longo da actuação, foi reagindo – muitas vezes em expressões corporais, algumas vezes verbalmente – às comunicações da artista, entre os temas que, à excepção de alguma uniformização no estilo vocal, tão bem interpretou. Boine explicou-nos a sua cultura tão particular, dançou como uma ave livre, questionou traduções em português para os títulos das suas canções, apelou à dança, bebeu vinho, pareceu esvair-se em mente do palco, mesmo movendo um corpo frágil. Contou histórias. Transportou-nos para um verdadeiro ritual.

Porque assistir a um concerto de Mari Boine – uma senhora pequena mas grande performer - é, antes de tudo, entrar num ritual onde o xamanismo não é inocente. Cada tema abre uma porta para um estado aparentemente abstracto ao qual, curiosamente, o corpo não é alheio. Pelo contrário: a viagem impulsiona o movimento do corpo. Da tradição xamânica, Boine e companheiros herdam o ritmo, o sentido de forte espiritualidade e a sensação de êxtase e transe. A forma como Boine canta, se move e como faz mover o xaile vermelho – o fogo, novamente - que a envolve reflecte esta ligação, hipnotiza.

As palavras, essas, que delicadamente foi proferindo e cantando, evocam sobretudo a natureza como modo de protecção das crianças («Celebrate the new born»), as montanhas-mito que aterrorizam o povo cristão e que são, segundo este, obra do diabo («Come with me to the secret mountain») ou ainda o sol da meia-noite que ilumina a Noruega durante os meses de Verão («Northern Light»). Outras vezes, há apenas uma voz a emitir sons sem um significado patente.

No final, e depois de um encore completamente alucinante, feito de dois temas completamente antagónicos – entre um desvario de um saxofone a querer explodir e uma balada estranhamente convencional a inspirar calma e tristeza por todos os poros, «Eagle man/Changing woman» -, Mari Boine e banda despediram-se, timidamente, de um público boquiaberto. Ficou um palco vazio, mas encheram-se centenas de mentes com boas e mágicas memórias.
· 30 Nov 2003 · 08:00 ·
Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt

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