Joanna Newsom / Alasdair Roberts
Aula Magna, Lisboa
02 Mai 2007
É uma questão que pertence a cada núcleo familiar colocar a si mesmo: desde que tempos remotos um serão não é reservado ao contar de histórias que reservem margem mínima à imaginação? Do mesmo modo que o teledisco assassinou a estrela de rádio, também o drama reciclado de horário nobre televisivo atrofiou a dimensão do conto. É preciso ser-se heroicamente romântico e milagrosamente inspirado para, com apenas duas letras (leia-se o fabuloso disco Ys), reacender as quimeras à fantasia que raramente é servida sem ser entrecortada por intervalos tortuosos ou sem as imposições estéticas do franchising. Joanna Newsom - a trovadora, o elfo amoroso, o fenómeno que divide opiniões extremadas - decidiu-se por uma alegorização que magnífica o seu talento para a escrita de canções e, com isso, preenche por completo todo o espaço da Aula Magna que se vê presenteada com uma ocasião de beleza maior que transcende qualquer cliché aplicado ao termo folk.

A naturalidade protege as vozes raras e retira de equação o cepticismo que as assombra. A ausência da mesma naturalidade torna plástica e pretensiosa a invulgaridade de vozes tantas vezes esforçadas em atingir um certo tom estranho - e é por isso que tão imediatamente se descobriu a careca copista às insuportáveis manas Cocorosie. Joanna Newsom verga à sua entrega as dúvidas que sobravam e impressiona por transparecer flagrantemente a sensação de que nasceu para se encontrar ali de harpa entre as mãos, conduzir a sua voz singular pelo mundo e liderar a Ys Street Band – composta por violista (principalmente agente dos arranjos de Van Dyke Parks), um instrumentista entregue à tamboura (estranha guitarra) e percussionista determinante nos crescendos (de “Cosmia”, principalmente) e forragem de passagens mais climáticas. Em conjunto, os quatro têm direito a demonstrar de que malhas se faz um telepático entrosamento em “Colleen” - preciosidade de um recente EP – que estabeleceu, nessa noite, curta ponte entre um sentimento medieval de corte e a mais apurada Kate Bush. Apetece bater com um pandeiro num calcanhar sujo de terra ao som de “Colleen” que é argumento de peso na actual digressão de Joanna Newsom.

De modo absolutamente avassalador - vivido, do lado de cá, num só arrepio ininterrupto -, Newsom entrega-se solitariamente à gigantesca harpa numa “Sawdust & Diamonds”, que mantém em hipnose os mais vertiginosos dedos da mão direita, sobre as cordas, e mais soltos os da esquerda que percorre verticalmente todo o imenso instrumento num grandioso momento que torna claro que o Olimpo não tardará a servir de morada ao songwritting de alguém que tem a ousadia de suceder a The Milk-Eyed Mender com um Ys mais ambicioso que qualquer última tendência.

Joanna Newsom conquista a cada fôlego. Encosta graciosamente o queixo ao ombro esquerdo, recolhe longas e efusivas ovações que até à marca dos dois minutos demonstram agrado pelo momento musical e que, a partir daí, lisonjeiam apenas a beleza da harpista. O feitiço chega a ser tão inquebrável que aos mais obsessivos sente-se mesmo um ciúme saudável de Bill Callahan (o (Smog) que lhe tem cativo o coração). Seria provavelmente esse o sentimento a consumir o membro da plateia que solicitou persistentemente “Sprout and the Bean” - sem sucesso, mas merecendo a recusa delicada da própria Joanna Newsom que deve ter abandonado a Aula Magna com o triplo dos pretendentes acumulados aquando da sua entrada. Não existe coração minimamente susceptível que resista ao híbrido de elfo e sereia que, na actualidade, maior porção de alma e vivência pessoal entrega à canção.

Por comparação, parece pálido o contributo do muito ligeirinho e desguarnecido (guitarra e voz) Alasdair Roberts que se fica por uma primeira parte que satisfaz índices mínimos de interesse com o passeio por músicas sobre pequenas vilas escocesas, aves que cruzam o céu e moças merecedoras de comedida devoção. Com a gigantesca harpa de Newsom a servir-lhe de segundo plano, Alasdair Roberts sabe demasiado a uma cerveja Guiness sem álcool.
· 02 Mai 2007 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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