Cristina Branco
Casa da Música, Porto
19 Out 2006
Diz-se que todos nós perdemos 21 gramas no exacto momento em que morremos. Diz-se no filme 21 gramas, diz-se. Pois 21 gramas é o nome do novo espectáculo de Cristina Branco, uma homenagem a Amália Rodrigues que deverá ser editada em CD/DVD em breve. Por enquanto, Cristina Branco apresentava esse trabalho na Casa da Música com a sua banda: Ricardo Dias (Piano), José Manuel Neto (Guitarra Portuguesa), Alexandre Silva (Viola) e Fernando Maia (Baixo). Na memória está ainda o precioso Ulisses, aquele que é provavelmente o melhor disco da cantora que um dia nasceu em Almeirim e que desabrochou para o fado aos 18 anos, precisamente depois de ouvir Amália Rodrigues. Agora, com este novo projecto, Cristina Branco está de novo mais próxima da tradição do fado, das suas raízes.

Cristina Branco © Casa da Música

Aparentemente, Cristina Branco começa finalmente a receber o reconhecimento mais do que merecido em Portugal e que lhe faltou durante alguns anos. Ulisses pode muito bem ter sido o culpado desse aumento desse reconhecimento. A Sala Suggia recebeu Cristina Branco com locação quase esgotada, cenário perfeito para receber a homenagem a Amália, mas não só. O alinhamento do concerto fez-se realmente muito de canções interpretadas por Amália como “Povo que Lavas no Rio (Fado Vitória)”, “Havemos de ir a Viana” (que bonito é ouvir cantar “Se o meu sangue não me engana / como engana a fantasia / havemos de ir a Viana / ó meu amor de algum dia”), a fabulosa “Barco Negro” (“Eu sei, meu amor / Que nem chegaste a partir / Pois tudo, em meu redor / Me diz que estás sempre comigo”.), com percussão na tampa do piano. “Barco Negro”, para o bem e para o mal, mostrou que aqui, nesta canção mais do que em qualquer outra, Amália é insubstituível e eterna.

Ao contrário daquilo que se podia prever, Ulisses foi passagem obrigatória e repetida durante a actuação. A luminosa e brilhante “Sete pedaços de vento” foi a primeira, e aqui a voz de Cristina Branco brilhou verdadeiramente pela primeira vez: “Sete pedaços de vento / Sete vozes no jardim / No jardim que eu própria invento”. “Redondo Vocábulo” de Zeca Afonso (“Pelos degraus de Laura / A tinta caía / No móvel vazio / Congregando farpas / Chamando o telefone / Matando baratas / A fúria crescia / Clamando vingança”) e “Porque me olhas assim”, acompanhadas ao piano, foram momentos de uma perfeição e emoção arrepiantes. “Navio Triste” foi outro momento de Ulisses a surgir num alinhamento onde se destacou também uma curiosa versão de “Rosa”, um tema composto por Pixinguinha, apresentada como o resultado natural do constante colocar e retirar do pé de dentro do aquário do fado. A certa altura do concerto, sem que se tivesse feito notar, Cristina Branco ficou mesmo descalça (literalmente), em palco.

Cristina Branco © Casa da Música

Apesar da boa prestação de José Manuel Neto na guitarra portuguesa, na actuação de Cristina Branco notou-se a ausência do virtuosismo e da sensibilidade de Custódio Castelo, habitual acompanhante da fadista – a comunicação entre Cristina Branco e Custódio Castelo era algo indubitavelmente belo. Apesar dessa ausência, Cristina Branco teve imenso sucesso ao transpor parte de Ulisses para o palco (pena terem faltado canções como “Choro (Ai Barco Que Me Levasse)” ou "Cristal (Tinha Algum Vinho Ainda)"), mas acima de tudo – a parte central da actuação – revisitar Amália com o respeito e a tradição que se exigem. Na triste falta da sua voz maior, o fado, com Cristina Branco, está em boas mãos.
· 19 Out 2006 · 08:00 ·
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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