CAVEIRA / Comets on Fire
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
13 Out 2006
Independentemente do caminho percorrido para lá se chegar, a altitude da localização da Galeria Zé dos Bois é quase sempre superior a qualquer que seja o ponto de partida em Lisboa. Sendo que numa noite de sexta-feira o Bairro Alto conhece invariavelmente uma maior afluência e, para quem até lá se dirige de carro, isso significa que terá de ser hábil na procura de estacionamento, antes de merecer o maná rock que um concerto possa ter para oferecer. Além disso, a calçada que reveste os passeios circundantes ao quarteirão da ZDB não será propriamente nivelada e impune de atraiçoar uns quantos pés mais embriagados. Sim, porque ainda está reservado à música esse efeito adulterador, e não apenas aos consumíveis de eleição do Bairro Alto. Por se suceder num dia religiosamente simbólico e por exigir ao corpo alguma dose de sacrifício, a noite de sexta-feira passada ganha uns mais definidos contornos de peregrinação (e ninguém sente a grandeza a um Avatar sem antes o escalar). Aliadas as iniciais de CAVEIRA e Comets on Fire, logo se percebe que o rock menos formatado pode ainda representar contra-cultura. Poder celebrar isso durante intensa hora e meia purifica qualquer um dos tóxicos acumulados durante uma semana.

Algo de francamente poético se sente ao ponto de igualdade que serve de rampa de lançamento às duas partes envolvidas num concerto de CAVEIRA: o público não sabe de antemão por onde será sensorialmente arrastado, o trio em palco dificilmente calculará em que paragens se situará a metade do percurso e na recta final. A partir daí, a prestação evolui como um corpo cego pela incógnita, obcecado por conhecer as dimensões ao casebre de pedra assombrado por onde se decidiu aventurar. A invisualidade torna mais apurados os sentidos associados à locomoção. Os CAVEIRA dependem essencialmente da comunicação triangular entre os membros superiores e inferiores (as guitarras) e o pulmão e principal bomba sanguínea (a bateria). Assistir à cabra-cega que desenvolvem os três vértices oferece o direito a recompensas impensáveis que, tantas vezes, atropelam sem aviso prévio: passagens mais climáticas (poucas) a coincidir com a adaptação táctil ao espaço, o marasmo de ruído que se descobre à angústia de alguém desorientado, os riffs em farrapos que se escutam como os braços e pernas que procuram estabilizar o corpo quando este cai numa escada ou alçapão. E, quando a telepatia preenche o que falta ao entrosamento, os CAVEIRA desovam espontaneamente momentos de grandeza inédita a que provavelmente nunca teriam acedido pela via da composição estruturada. Visualmente, pode até ter sido a meia-hora final do Projecto Blair Witch filmada (ou não filmada) por Brakhage. Sobram na memória escassas polaroids de tons rubros que mais não são do que souvenirs malditos.

No lugar do grande mural de entrada, que a Zé dos Bois reservava para todo o tipo de figuras e desenhos imediatamente associáveis ao lugar, agora encontra-se um circular (e algo obtuso) bolo percentual intitulado Demóniocracia e que divide a (vontade da) humanidade numa avassaladora porção a negro e a dos Estados Unidos da América minoritariamente assinalada por uma pequena fatia de cor vermelha. Se atendermos à sua proveniência, a entrega desalmada dos Comets on Fire merece que seja reavaliada a tal Demóniocracia - passando o vermelho solar a eclipsar por completo o negro da humanidade. Até porque é desumana a retaliação de cariz (deci)bélico que vale aos autores de Avatar toda a garra necessária para tomar de assalto o abafado aquário da Zé dos Bois. Ardentes na pira dos Comets, empilharam-se um rock mais perto da ramificação stoner por imponderada libertação de radioactividade (capaz de derreter a forma de uma canção e torná-la numa imensa jam), vertigens de mais acentuada gravidade psicadélica (sem o pretensiosismo que isso, por vezes, isso implica e impulsionada pelo echoplex de Noel von Harmonson), a frontalidade incendiária de um fulgor que não perde tempo em subtilezas ou em dar uso aos instrumentos mais atípicos surgidos em disco, um enorme Ethan Miller – vocalista e guitarrista - que se submeteria à guilhotina se a sobrevivência do rock disso dependesse. Também uma electrizante passagem por “Holy Teeth” (parte da novidade Avatar) que ameaçou as fundações ao quarteirão. O próprio Ben Chasny surgiu completamente irreconhecível aos olhos de quem o associaria mais imediatamente às paisagens mais pacíficas do projecto Six Organs of Admittance. O gozo sentido à sala era absolutamente comunitário e media-se pelo suor libertado. O azar da sexta foi a sorte da noite em que o rock detonou a ZDB.
· 13 Out 2006 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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