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Holy Smokes Talk to Your Kids About Gangs

2006
Skin Graft


O karma e crédito indie que acumula Zach Hill é proporcionalmente flutuante conforme os projectos em que se vai envolvendo a um ritmo sobrenatural, mas o estilo animalesco e ressoar vigoroso da sua bateria é de tal forma vincado que, em grande parte dos casos, 30 segundos bastam para denunciar a sua presença. Omnipresença, neste caso, porque Zach Hill é mais um daqueles seres insones cuja força imensa serve essencialmente para cumprir a responsabilidade ética de produzir cinco vezes mais do que qualquer homólogo recrutado para figurante nos My Chemical Romance ou noutro qualquer bando de poseurs igualmente odiável. Daí que os ritmos corrosivos da bateria de Zach sirvam para fragilizar as fundações ao poleiro onde assentam os bateristas de fachada e, de um modo impressionante, soam como se suados por um Cro-magnon sujeito a exposição militar aos discos mais ilimitados da lenda Max Roach. Mas Zach Hill não deixa de ser Zach Hill, aplicado em combustões duais nos Hella (o seu principal projecto), ou nas passagens pelos Nervous Cop ou Ladies. Aqui, surge à frente dos Holy Smokes.

O peso indiscreto da sua marca leva a que – mesmo contra a sua vontade - seja um líder e catalizador de talentos equivalentemente frenéticos e inspirados. Para a presente ocasião, garantiu os préstimos de membros dos Pinback (Rob Crow pela-se por estes pagodes), The Advantage e dos saudosos Flying Luttenbachers, entre outros. Holy Smokes terá como tradução possível um esbugalhado Com a breca!. Talk to Your Kids About Gangs serve essencialmente como alerta para os malefícios que pode provocar a sobreexposição a essa breca, que mais não é do que a radiação que libertam os instrumentos sujeitos a um uso abusivo e a contextualizações proto-futuristas que, ao incidirem sobre eles, os derretem (“Universe’s N.A.R.C†intercepta o som que emite a voz de Rob Crow e o desencantado piano e bateria de Zach no momento exacto em que rodopiam no ralo do duche onde a galáxia foi tomar banho). Na sua essência apodrecida, Talk to Your Kids é o apetecível fruto proibido colectivamente plantado num terreno industrial de Sacramento, Califórnia.

Contudo, obriga o aspecto permanentemente labiríntico do segundo álbum dos Holy Smokes a uma demanda arqueológica que conduza a esse tal fruto – as melodias que comporta encontram-se soterradas por grossas camadas de virtuosismo faraónico (capricho típico de alguns envolvidos mais prósperos), os preciosos hooks e linhas de baixo mais viciantes que possa ocultar encontram-se à distância do transe cuja obtenção exige uma mão cheia de escutas para afeiçoamento e outra para rampa de assimilação. Porque, durante os primeiros contactos imediatos, Talk to Your Kids About Gangs parece-se demasiadamente com um daqueles deboches que oferecem muito maior gozo aos envolvidos do que aos ouvidos externos, como se de um mero Battle Royal de vontades isoladas se tratasse. Trata o disco de demorar o seu tempo a descodificar os símbolos dispostos nas suas runas ruidosas, mas, assim que se dá por garantida a imersão, Talk to Your Kids torna-se um implacável evangelizador das características à partida repudiantes. A partir daí, reconhece-se o charme subversivo a todo o tipo de pugilato em que se envolvam os baixos e bateria espasmódica, tornam-se bem vindos todo o tipo de adereços industriais e nem provoca tanto espanto o momento maior em que Zach Hill se deixa possuir por um Rob Mazurek de melhor apanha para inflamar o trompete da esquizofrénica “Young Man’s Bluesâ€.

Enquanto panfleto impresso a tinta ácida, Talk to Your Kids About Gangs convence os visados a não arriscarem sequer a visita das zonas mais urbanizadas da Costa Oeste dos Estados Unidos da Barafunda. Como se a partir de um disco que quase sempre é excessivo na soma de elementos (“Too Many Wives†faz hino disso), Zach Hill e a sua armada procurassem deixar bem claro de que uma vivência massificada é igualmente estimulante e tortuosa, e este disco a catarse disso. Faz sentido que seja uma paisagem desértica a ilustrar a sua capa. Afinal, a serenidade que proporciona um espaço tão plácido quanto o deserto é o oásis a que aspiram a maior parte das bandas de sonoridade spazz. Os Holy Smokes libertam o inferno para mais imaculados partirem para um deserto que, porventura, será o último reduto da escassa pureza que sobra ao estado da Califórnia.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
30/10/2006