bodyspace.net


Yoshio Machida Naada

2006
Amorfon


Por culpa da decadência generalizada dos anos 80, o ninja, enquanto personagem, terá sido das figuras cuja dignidade mais sofreu com as imposições rascas do mercado vídeo – passou a trajar as cores mais absurdas (à margem do negro tradicional), deu nome a sagas série-b e – pasme-se – chegou mesmo a usar eyeliner. Num tempo em que o surgimento de um ninja em cena ainda suspendia a respiração, Toru Takemitsu era rei e senhor das bandas-sonoras no Japão e primeira escolha para compor música que se adequasse a épicos dinásticos ou a histórias de fantasmas. Masahiro Shinoda – um dos muito realizadores mantidos na enorme sombra de Kurosawa – apreciava de tal forma o seu trabalho que afirmou ter perdido o gosto em filmar assim que Takemitsu anunciou o fim da sua carreira. Ainda assim, sobrou como documento dessa cumplicidade criativa um Samurai Spy tornava ainda mais intensas as sequências de acção ao contrastá-las com um intricado enredo político que envolve mais nomes que O Padrinho. Sabe-se que os processos de filmagem e composição musical foram conduzidos em paralelo e combinados em fase de pós-produção. Samurai Spy é obra de uma aliança telepática, portanto. Mas nada disto importaria se o filme não tivesse valido a introdução de uma peculiaridade nos recursos de Takemitsu: a da música caribenha que se escuta às sequências em que o herói Sasuke mergulha profundamente em visões premonitórias e outras trips simbólicas. O realizador Shinoda alegava numa entrevista que o Japão não estaria propriamente preparado para o que lhe pareciam ser “ritmos cubanos e jazz latino improvisadoâ€. Aquele som caracteristicamente circular dos metais caribenhos provocou alguma estranheza inicial, mas lá se fui misturando com os conteúdos nipónicos. A verdade é que por altura da sua meia hora final, Samurai Spy já avança indistinguível quanto à origem geográfica dos seus sons.

Chegam a ser por demais evidentes as afinidades entre os usos atribuídos aos metais nas duas zonas: as tonalidades verificadas em ambas são conjugáveis (assim prova o casamento descrito em cima), tal como o simbolismo solar que tem o gongo no Japão não estará muito longe da sensação de despertar optimista que produz a música das Caraíbas (basta escutar algum “reggae roots†para entender isso). Yoshio Machida tem bem presente no seu trabalho essa equivalência e soube combinar no seu amorphone as suas aptidões de improvisador e as propriedades musicais do formato concavo das panelas metalizadas criadas em Trinidad e Tobago nos anos 30 do século passado (para se conhecer o background e origens do instrumento, consulte-se o segundo parágrafo do disco referenciado em baixo). Sendo que ao quarto disco dedicado à exploração do amorphone, Machida reúne já uma familiaridade que muito naturalmente proporciona bifurcações inéditas ao uso a atribuir ao instrumento. Em Naada, desaparece de cena o contributo dos japoneses Minamo – que ornamentavam digitalmente o anterior Digital Flowers e passa a fazer parte do passado o tratamento computadorizado dos sons produzidos pelo amorphone. Como que impulsionado pela lógica que encadeia as estações, Naada circunscreve-se a uma exclusividade acústica e, desse modo, atreve-se ao inevitável mergulho convicto numa transbordante essência que pode já responder por lagoa comum onde foram desaguar todos os ensinamentos resultantes dos anteriores álbums. Machida aproveita as propriedades minerais dessa para alimentar as mil e uma plantas e frutos redondos que semeia a cada vez que embate – com energia variável – as baquetas contra o metal concavo.

Às primeiras audições, Naada pode até soar indistinto entre si, assemelhar-se a tortuosa demonstração prolongada do virtuosismo que acumula alguém no instrumento que escolheu para o representar artisticamente. Naada, tal como muitos dos discos surgidos a partir do espólio onkyo (improviso japonês), não oferece melodias imediatamente prontas a servir de âncora ou marcas capitulares que assinalem os seus pontos altos e baixos. Antes flúi, mesmo que sobre sons entrecortados por delay perfumado, apontando novamente para as flores como mote temático (dois movimentos são directamente inspirados na flor de lótus) e renovando o colorido aos jardins a cada seis minutos (duração média das suas faixas). Yoshio Machida alcançou finalmente a mestria no dispositivo criado por si. Pressente-se esse imenso à vontade num “Bloom†que evolui continuamente como um drone relaxante que acumula sobre si um número infindável de estratos minimamente diferenciados. Pelo carácter transgressor dessa opção e por nunca soar a utensílio new wage este Naada, Yoshio Machida merece uma vénia. Merecerá duas ou mais por quantos momentos de descompressão venha a oferecer a sua música, que melhor se escuta espalhada pela casa do que limitada a um par de phones.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
16/08/2006