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Cass McCombs A / PREfection

2005
Monitor


Cass McCombs é o orgulho de Baltimore. Enquanto grande parte dos seus parceiros de editora (Monitor) não acabam nos cuidados intensivos de pulsos cortados (os Oxes, por são exemplo, são um desastre por acontecer), McCombs adianta-se no processo clínico e surge em cena como a alma errante que, percorridas as camas de hospital e instituições sanitárias, acaba por encontrar solução na terapia da alegoria autista, projecção indistinta de um emaranhado de sentimentos por processar. O autor de A suspende a resolução dos seus fantasmas da mesma forma que Tsubasa (o herói da série de animação japonesa a que dava nome) adiava o golo para um próximo episódio. Até quando, Cass? PREfection é já o segundo disco e o véu permanece por cair.

Tal como a história do rock já tratou de provar, polvilhar a carreira de determinado songwriter com a dose ideal de mistério e misticismo só favorece o aumento do seu culto. Contudo, decepciona quase sempre o anzol que não apresente substancial isco na ponta. Como se tal não bastasse, é sabido que de bardos desgostosos está a indústria cheia e Bright Eyes não dorme. Um lugar cativo espera por Cass McCombs no purgatório que antecede a notoriedade, assim que o songwriter se decidir a uma entrega incondicional em vez da revelação a conta-gotas.

Por enquanto, o músico californiano vai fazendo desfilar composições apropriadas àquelas alturas em que todos os impulsos já obedecem à sedução do neon. O negrume da boémia é percorrido por McCombs em jeito de peregrinação rumo a uma qualquer redenção, que se aproxima da imortalizada por Bob Marley por via da paz de espírito a que apela. A música do promissor talento reclama pela “Range life†a que os Pavement se referiam ironicamente, acusa a fadiga de um comediante decadente (escutar “A comedian is someone who tells jokesâ€, incluída em A) à beira de reforma economicamente estável e afastado das objectivas. Depois das putas e vinho verde, venham as sopas e descanso.

As primeiras faixas de A são recortes de águas passadas trocados com Neil Young na praia. A balada agridoce “I went to the hospital†serve de pivot ao tom do restante disco e, madrugadora, coloca a fasquia à altura de uma inspiração que Cass parece não conseguir repetir. A revela - em apenas cinco faixas – um artista excêntrico: “AIDS in Africa†representa a maior aproximação alguma vez ocorrida entre universo indie e o panfleto solidário “We are worldâ€. Não há muita paciência para tal bizarria. Em pouco tempo, ficamos ao corrente de que Cass McCombs é assumidamente auto-destrutivo: equilibra ases como “What isn’t natureâ€, para, imprevisivelmente, derrubá-los com malabarismos inconsequentes. “What isn’t nature†reclama por uma adaptação dos Walkmen, pela forma como percorre a mesma angústia de beco que se associa à banda de "The Rat".

Por sua vez, PREfection é coito interrompido, ameaça de emancipação, antevisão de ocorrência cósmica por acontecer numa carreira em que tudo parece tardar. A turbina que liberta por aqui o éter é gerida por mão generosa, o aspecto mundano cultivado em A ganha asas e acaba o segundo disco por merecer com mérito o selo da 4AD - que o distribui em continente europeu – à custa da liberdade de movimentos que exibe enquanto cruza os céus como um papagaio de papel. Sobressai “Equinox†como faixa capaz de ombrear com os mais comoventes romances entre os Manic Street Preachers e o escape à urbanidade. Fosse vocalmente mais felino e glaciar, e "She's still suffering" não destoaria como lado-B dos Cure. Fica a ideia de que, apenas somados e editados, os dois - A e PREfection - resultariam num grande disco.

Num futuro distante e caso Cass sobreviva ao tempo, este pode bem ser o tipo de nome ideal à manutenção de um termo tão bizarro e vago quanto Adult Alternative (termo esse que equivocamente mistura azeite R.E.M. com vinagre Sheryl Crow). Venha a ser apreciado em dose single e desprovido da sua complexidade (superficial ou não), e Cass McCombs não dói a ninguém, arriscando-se mesmo a fazer sorrir todos os presentes num escritório abafado pela transpiração da sua melancolia. Privado de background, McCombs soa perigosamente a genérico (tipo Badly Drawn Boy). Combinado como um puzzle, acumula cabeças até somar sete. Venha o diabo e escolha entre apreciá-lo pela simplicidade chicléte ou pelo desafio esfíngico que representa.

Por esta altura, e atendendo a que PREfection apenas contribui para a multiplicação de pontas soltas, meio mundo permanecerá sem saber se o discurso confessional parte de alguém que sangra vermelho ou de uma persona que só existe em disco. Cass McCombs parece demasiado preocupado em revestir-se de camadas (o seu próprio site comprova-o) que o protejam de interceptores maliciosos e o coloquem mais próximo da aura que actualmente coroa Will Oldham ou Chan Marshall. Enquanto a cebola não se decide a descascar, John Frusciante já lançou mais quatro discos superiores a este (se bem que também muito mais reveladores das suas perturbações). O fado mora ao lado.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
27/04/2005