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Six Organs of Admittance School of the Flower

2005
Drag City


Começando pelo fim, reconheço que "Lisboa" será de longe um dos meus temas favoritos deste ano. Mas nem sempre foi assim. Sou um puto mandrião com a puta da mania. Sou arrogante, sou estúpido, não sei fundamentar as minhas opiniões parvas sobre tudo e mais alguma coisa e sou preconceituoso para caraças. Algures em 2004, quando a free folk ou a freak folk ou o que quer que seja começou a entrar em voga, apressei-me a descartar tudo aquilo como "um bando de hippies drogados sem talento para escrever canções e com a mania que são a salvação do Mundo". Até inventei um slogan: "Free folk from free folk". Manifestei-me com veemência em frente a editoras e a estabelecimentos e até casas de particulares que apoiassem o "movimento". Atirei frutas podres a Ben Chasny.

É claro que não foi exactamente assim, mas fica muito mais giro fantasiar. Como é óbvio, e como acontece quase sempre, errei. Mas quem é que nunca errou? Quem não errou que atire a primeira pedra. OK, estava a merecer. Ainda mais: agora, ouvindo e apreciando School of the Flower, o puto ainda estúpido e outrora céptico rende-se àquilo que era óbvio para toda a gente menos para ele próprio. E custa, custa muito, porque não quero chicotear-me nem autoflagelar-me, mas mereço fazê-lo.

E agora partilho um segredo: não existem transportes públicos que não o metropolitano em Lisboa. É um mito que deve ser quebrado. Os autocarros da cidade pura e simplesmente não funcionam. Atravessando Monsanto num autocarro, após meia hora de espera para apanhá-lo, olha-se para as árvores, para as folhas em tons acastanhados, e é bonito. A banda sonora é School of the Flower, o tema que fecha, "Lisboa", mas não podia ser qualquer outra coisa. "Lisboa" podia ter qualquer outro nome, o impacto seria o mesmo. Aquelas linhas, aquela melodia, aquela canção instrumental... tudo, tudo no sítio, no sítio certo e bem doseado. Não há nada, nada, mas mesmo nada, que se compare àquilo. E por acaso funciona na cidade que lhe dá o nome.

Talvez funcione noutras cidades, não sei. Não posso dizer que tenha ido a Paris, a Nova Iorque, a Amesterdão, a São Francisco, a Santa Comba Dão... nem a Londres, pelo menos recentemente e com esta banda sonora. Mas o que interessa é que funciona em Lisboa. Mas "Lisboa" podia ter outro nome, podia chamar-se "Tese sobre a Linguística Aplicada nos Estados Unidos da América" que o impacto seria semelhante. Só a homenagem a Carlos Paredes é que não estaria patente. É bonito e não há volta a dar-lhe. Qualquer outra coisa a dizer seria redudante e falharia ainda mais.

Posto isto, e pondo para trás o que vem no fim - "Lisboa" -, Ben Chasny, a pessoa que está por trás do nome Six Organs of Admittance, droga-se. Não se droga com drogas artificiais; é um hippie da floresta e por isso toma drogas naturais. Cogumelos, marijuana, o que houver e o que for natural. Valoriza mais Carlos Paredes, e acha que qualquer pessoa que idolatre John Fahey devia também idolatrar o seu equivalente português.
Quando digo que Ben Chasny se droga, estou a tirar conclusões do discurso dele. Em entrevista ao Bodyspace, o tipo soltou umas linhas sobre Paredes. "Mas isto são apenas observações superficiais. Sobre a música: apaixonei-me pela forma como as linhas melódicas dele se arqueiam para depois pousar num sonho tranquilo, como um rouxinol que passa por entre as flores de um jardim e, de repente, pousa na terra e põe-se a olhar o sol. Mas é como se o sol de Paredes tivesse sempre uma nuvem por perto. Por vezes, a nuvem põe-se em frente ao sol e noutra vezes a nuvem afasta-se do sol. Mas está sempre por perto. Por vezes, a nuvem ocupa o céu inteiro com movimentos melancólicos profundos! Mas o rouxinol voa sempre.". Rouxinóis, jardins, flores, tudo isto é droga. Só pode ser. E ainda bem. A droga faz bem aos músicos. E a Chasny ainda mais.

Os Six Organs of Admittance não são os Six Organs of Admittance. Não são uma banda. Para evitar isto, é melhor só dizer Six Organs of Admittance, não usando artigos definidos. Como em "O novo disco de Six Organs of Admittance." Funciona. School of the Flower é o primeiro disco de Six Organs of Admittance gravado em estúdio, e isso nota-se, mais propriamente na boa gravação. Para além disso, é mais simples, e acaba por ser muito mais bonito. Nos outros discos havia sempre uma estética lo-fi, devido a Ben Chasny seguir o credo do-it-yourself e não se querer meter em negócios e coisas assim. Mas a editora indie Drag City pegou nele, tal como pegou em Joanna Newsom, com quem anda a viajar pela Europa - sortudo do caraças - e assim apareceu este disco. Gravado com Chris Corsano, um baterista de free jazz, o disco começa com uma introdução barulhenta, bem ao estilo da introdução de Standards, dos Tortoise, com uma bateria e uma guitarra. Mas cedo esta introdução dá origem a "All You've Left", um tema com a guitarra e a voz de Chasny, não percebemos o que ele diz, mas, raios, é uma canção tão bonita... o acompanhamento da guitarra, a melodia de voz, tudo no ponto. "Words for Two" segue esta canção, e é das coisas mais simples e bonitas no disco, só guitarra e voz, com direito a "ooh-oohs". Tem em 'Thicker Than Smokey', um original de Gary Higgins, uma irmã. Há canções, há instrumentais. Tudo bonito. Linhas de guitarra viciantes, vozes bonitas, uns efeitos sonoros aqui e ali, laivos de percussão, uma bateria free jazz que faz aparições esporádicas e existem linhas melódicas que se repetem, que se perpetuam, e não são nada, mas nada chatas. Confira-se no tema-título do disco. 13 minutos e 31 segundos de repetições que passam num instante. Progride de uma simples repetição para uma barulhenta brincadeira entre Corsano e Chasny.

E é isto que é o disco. É um disco do caraças, porreiro, bonito, e depois vem "Lisboa". É cruel, é cruel, o disco está a acabar e pimba. Lá chega o tema. E se podemos dizer isso dum disco, que é um muito bom disco e no fim ainda tem tempo para um tema totalmente brilhante, não é nada, mas nada mau. Lembra Pink Moon de Nick Drake, lembra John Fahey, lembra Carlos Paredes, lembra muita coisa, mas não é nada dessas coisas. As linhas melódicas da guitarra de Ben Chasny atravessam um jardim, como um rouxinol, como Paredes. E é bom. E bonito. E não me lembro de forma mais bonita de passar quase 40 minutos. Especialmente se ao mesmo tempo atravessarmos Monsanto quase na Primavera num qualquer autocarro que funciona mal em Lisboa.


Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
12/03/2005