bodyspace.net


Terebentina EP 01

2019
/ Baby Yoga Recordings


E começa com um grito - um grito sem um género definido, um grito que pode ser death ou black metal, que pode ser rock ou punk, que pode vir do goto ou da mente ou da alma, que pode representar um só indivíduo ou milhões deles. Começa com um grito e com a promessa, ou o mantra: esqueço-me de tudo. Começa e por ali se mantém e anuncia, implicitamente: esta é a primeira salva da revolução. O primeiro choque. Vai-se a primeira bomba despertada..., que os Terebentina não têm tempo para aves de qualquer tipo.

Os Terebentina, percebemos, são o braço armado - com música - de um colectivo que se intitula Bergado - que, percebemos, é uma submissão da palavra vergado ao maravilhoso sotaque nortenho, mesmo sem ter lido primeiro esta mesma explicação no P3. Vergado, como qualquer ser o está ao sistema. Nem precisa de ser ao sistema. Vivemos constantemente vergados; o que somos é a percepção que os outros têm de nós. Por exemplo, há quem seja, para muita gente, aquele gajo que escreve umas coisas em websites sobre música que mais ninguém ouve, e que é constantemente bombardeado pelos ecos do underground:

Olha aqui o nosso Bandcamp
Olha aqui esta primeira maqueta
Olha aqui o single de avanço do álbum
Olha aqui o concerto que estamos a organizar
Olha aqui a programação da nossa sala
Olha aqui, ouve aqui, olha aqui, ouve aqui, olha aqui, ouve aqui

E começa com um grito - o grito humilhado, o grito suicida, o grito que leva à insurreição: o grito que leva a que alguém se farte e desapareça, deixando no mundo - no virtual; não existe para além desse mundo - um mero fantasma e a dúvida: que lhe aconteceu?

E começa com um grito - o grito que reúne forças, procura encontrar a paz interior, volta aos momentos que antecederam o big bang da psicose: aos braços fortes mas ternos do underground.

O grito encontra os Terebentina que gritam. O grito dilui-se, deixa que a tela renasça alva. Este merece: é o grito de um novo começo. É o grito - aqueles segundos, aqueles decibéis - que levam a algo anteriormente impensável: gastar dinheiro num disco, quando os discos nos chegam gratuitos; trocar suor com quem andou a debitá-lo em 25 minutos de punk, rock, noise, free jazz, os Mão Morta com mais sotaque e saídos das Belas Artes, a Ama Romanta para uma geração que não sabe, nem nunca saberá - que importa o passado? - o que é ou era a Ama Romanta.

E o novo começo faz-se assim, sem certezas, sem garantias, sem desejos, mas com uma ideia - que tudo começa com uma ideia, desde Deus à Inteligência Artificial: os Terebentina, qualquer que seja a percepção que se tenha deles.

Uma viagem infinita me levou para um chão
De cimento, com mesas e cadeiras presas,
Expectantes por algo novo


Que é novo e não é - as influências estão lá todas -
Que é grandioso e não é - nem todas as antenas sintonizam a mesma rádio -

E que é isto: o melhor EP do ano, talvez da década (ex aequo com o primeiro dos Ermo), o game-changer que há 30 ou 40 anos atrás daria início a todo um movimento, mesmo que os Terebentina não queiram dar início a movimento algum: a percepção é a de que ficarão imensamente felizes se os deixarem no seu canto, bem longe tanto dos cordeiros como dos pastores.

Eu
não mais alguém
Eu
em busca de ninguém


Mas mesmo que eles não queiram essa responsabilidade, ou que não estejam sequer cientes dela, más notícias: ficarão para sempre vergados à vertigem que demonstraram neste disco, à mistura de sonoridades várias, à raiva das suas letras, ao totalitarismo da expectativa. Se o seu próximo trabalho não estiver nem sequer perto disto - e nem precisa de o estar musicalmente falando; nem sequer ideologicamente -,

eles que se fodam.


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
21/03/2019