...ali estava eu, de olhos semicerrados, a percorrer todas as tabs do Google Chrome em busca de um pedacito de informação que fosse, de um volt mínimo de electricidade que espantasse a anomia como o fogo um animal selvagem. De algo que pudesse alimentar a imaginação, a mesma que desde a primeira classe foi elogiada por dezenas de professores, que no secundário se destinou a fazer rir as colegas com textos patetas sobre sei lá o quê. Demonstra uma grande capacidade imaginativa, pode ler-se nas dúzias de fichas de avaliação que foram sendo enviadas para casa. Agora já não demonstro nada para além do ennui e já não tenho colegas de turma a quem queira fazer rir.
Colegas, miúdas, sim, que eu sempre me dei melhor com as miúdas que com os rapazes. É no que dá nunca ter sido machão bom de bola. Aposto até que entre eles me chamavam paneleiro.
Ou talvez o ennui tenha estado presente desde sempre e a imaginação fosse uma fuga, como a música o foi mais tarde, quando lhe comecei a prestar a devida atenção. Na quarta classe, deram-me uma ficha onde perguntavam qual a música que ouvia. Sem pensar duas vezes, escrevi: rock. Não era uma verdade absoluta - na altura as minhas atenções estavam mais voltadas para a Mega Drive e para o Sonic -, mas era verdade. A minha primeira cassete, contra todas as expectativas que se possa ter ou não da minha pessoa, foi uma compilação da saudosa Rádio Cidade onde, entre outros, estavam malhões como a "Mr. Vain" ou a "La Kabra".
Em casa, não havia uma cultura musical forte. Vinis, só de música clássica, objectos obrigatórios em habitações portuguesas dos anos 90 como Mingos & Os Samurais, um 7'' da "Je T'aime... Moi Non Plus" e pouco mais de interesse. Mas a minha mãe, que tinha sido mais ou menos punk e esteve em Cascais 1981 para ver os Clash (e que, estupidamente, foi oferecendo CÓPIAS ORIGINAIS dos seus álbuns a amigos e vizinhos - o White Album dos Beatles ou o Velvet Underground & Nico, por exemplo), comprou por esta altura a banda-sonora do Forrest Gump. Provavelmente ouvi-a mais vezes do que ela. Porque tinha duas das canções mais rock n' roll de sempre, e que foram uma completa e real chapada num puto que nunca gostou muito de levar chapadas: a "Hound Dog" pela voz do Elvis e a "Break On Through" dos Doors (censurada, claro; só muito mais tarde ouvi a versão original e demorei a assimilar o "high" a seguir ao "she gets..." do refrão).
Descoberto o rock, descoberta de uma vida, descobri também o quão chata pode ser a solidão cultural. É que aqui, neste pardieiro de nome Alverca, nenhum dos meus amigos estava muito para aí virado. Mesmo na família, só tinha o "apoio" das irmãs, sendo que uma era fanática pelos Bon Jovi e a outra nutria um gosto salutar pelos Metallica. No ensino básico, odiava tudo o que a turma considerava "rock": Limp Bizkit, Crazy Town, o lixo todo nu-metal que ia entrando pela pop. No 9º ano, houve uma aula de inglês em que a professora pediu, como trabalho de casa, que escrevêssemos a letra de uma canção da qual gostássemos - e eu fui gozado por escolher AC/DC, por um tipo que praticava capoeira quase no século XXI. Ninguém merece.
Talk shit, talk shit, people always talk shit...
Onde eu basicamente quero chegar com isto é: é difícil ser-se fã de rock, como o sempre foi, por mais mainstream que o género se tenha tornado ou por mais morto que esteja hoje em dia. Que não está, excepto para a legião de idiotas que entopem as caixas de comentários de jornais e revistas sobre música, que se acham donos de uma certa autoridade musical porque tiveram aulas de guitarra e aprenderam a tocar um riff qualquer do Slash. Não, o rock não está morto, mas tem caído na repetição ou, pior ainda, na anomia; hoje todos querem ser hippies em vez de querer partir tudo. Também já caí na repetição com esta minha afirmação, exposta em dezenas de críticas a discos rock, mas, foda-se: continua a ser verdade. Ou seja, de um lado temos todos aqueles que não gostam de rock, e do outro todos aqueles que gostam de necrofilia. Os que habitam a zona cinzenta são manifestamente poucos.
Para alguém que, como eu, encontra no rock o fix necessário, que junta álbuns do género como o Hunter Thompson juntou malas cheias de droga rumo a Las Vegas, o estado do género é uma tristeza. Tem melhorado. E encontra neste mesmo disco dos Sunflowers, banda que me foi dada a conhecer do nada e pela qual me apaixonei como se tivesse voltado a ter sete anos e dois dentes da frente a menos, um terramoto - especialmente o rock que é feito entre portas. Sem menosprezar as dúzias de bons trabalhos que têm surgido. Ou menosprezando talvez um bocadinho, porque sou do rock mas também sou do black metal e quero que vocês se fodam.
Terramoto, ok, não, que é francamente impossível imaginar os Sunflowers a criar réplicas (quem me dera que assim fosse). Mas é uma bruta chapada na cara. Eu, que nunca gostei de levar porrada, vejo-me agora sedento por um ou dois bem mandados bofetões na face. Mas a imaginação, neste caso - e como em todos os grandes discos - leva-nos a outro lado. Leva-nos aos grandes desertos americanos, cercados por montanhas e com bombas de gasolina de cem em cem quilómetros, numa estrada estupidamente recta onde um descapotável vermelho acelera ao som dos Cramps e do Lúcifer que era a voz de Lux Interior, o contraponto exacto ao Deus da bondade e do amor que é Jason Pierce. Leva-nos a bares de motoqueiros que te partem a tromba se pedires a cerveja errada. Leva-nos ao êxtase do crowdsurf, que em qualquer outra religião abraâmica seria visto como uma espécie de baptismo. Leva-nos a dançar, pular, a rir. A querer partir coisas, partir tudo.
O vosso disco é uma chapada, disse-lhes eu no Reverence, reafirmando-o neste texto. Serei masoquista?
...ali estava eu, de olhos semicerrados - e abri-os repentinamente quando pus a tocar a "Cool Kid Blues", aquela guitarra surf misturada com ruído e uma lata descomunal presente na maneira como eles cospem a letra da canção cá para fora. Quando cheguei à "Post Breakup Stoner" já estava a cantarolar os lá lá lás e a contorcer-me de felicidade com a maneira como a Carolina evoca os girl groups dos anos 60. Na "Zombie" fui a correr ao carro para tirar de lá o taco de basebol - they're coming from the hills, afinal de contas.
Falei nos Cramps e poderia dissertar sobre o meu amor pelos Cramps mas seria injusto bater nessa mesma tecla. Os Sunflowers não querem ser os Cramps, querem mostrar-vos o dedo do meio, trollar-vos até desistirem de viver e insultar todos aqueles que ainda ouvem e gostam dos Cramps em 2016. No fundo, são meio hip-hop: que se foda o passado, o que importa é o presente. O presente é o tipo que não sabe surfar, a pizza de pepperoni, a bruxa que vos avisa que não deviam ter fumado tanta erva, o cowboy vermelho francamente impossível de encontrar. Mas é para isto que serve este guia; para localizar o cowboy vermelho, para localizar a alegria de ouvir rock que tem permanecido escondida, para imaginar que somos uns mauzões quando nem uma aranha conseguimos espantar da parede. Ou para nos afogarmos no tema-título, cientes que vai demorar um bocado até voltarmos a ouvir um disco rock assim. Por enquanto os olhos estarão abertos.
E só para perceberem como o destino funciona: na última malha eles usam partes da "In The Hall Of The Mountain King", de Edvard Grieg, que também era usada nos cartoons do Sonic. Do rock ao rock, portanto.