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Björk Post

1995
One Little Indian


Na pólo superior do mundo, existe uma ilha vulcânica «circundada por águas geladas e profundos e escuros oceanos». Islândia dá-lhe o nome. Há poucos anos, era um segredo bem guardado. Um mito. Uma utopia.

Entretanto, uma menina de palmo e meio e com nome de arbusto procedente de localidades gélidas, quebrou o silêncio da tão minúscula e mística ilha e desvendou-a, em pecado, ao mundo. Björk Gudmundsdottir, eis a sua identificação. Hoje, não será descabido afirmar que existe uma Islândia antes e pós Björk. Venham os Sigur Rós, os Múm ou os Gus Gus que vierem (e sem qualquer tipo de desmesura pelas suas qualidades artísticas), Björk será sempre a embaixatriz da cultura islandesa. Disponível às nossas mentes, estará sempre a imagem de uma ilha e artista indissociáveis - unha e carne, para sempre.

Nascida há trinta e oito anos em Reykjavik, no seio de uma família hippie, Björk revelou desde cedo a aptidão para a música, aprendendo, ainda na infância, a tocar flauta. Aos onze anos gravou o seu primeiro álbum. Depois da passagem por meia dúzia de bandas, entre as quais os Exodus, os Tappi Tíkarrass, os Kukl e os mais mediáticos Sugarcubes, Björk decide-se por uma carreira a solo que teria como primeiro marco histórico o álbum de estreia Debut, lançado em 1993. A este seguir-se-iam novos triunfos, entre os quais Post, o álbum de consagração da artista. Desde esse momento, Björk tornar-se-ia, para sempre, na princesa mais distinta da pop europeia. Estávamos em 1995 e a artista caíra nas graças de público (principalmente do europeu) e dos críticos. O álbum atingiu vendas superiores a três milhões mas nem por isso – e o futuro revelou-nos isso – Björk se vendeu.

Post serve-nos o retrato do encontro possível entre as vivências da artista em dois locais tão distantes como o são Londres e Reykjavik. Do cosmopolitismo e cinzentismo da cidade londrina à condição insular e de encanto pueril da capital islandesa, Björk – acompanhada por senhores entendidos no apuramento do som, como Nellee Hooper, Graham Massey, Marius De Vries, Tricky e Howie B – oferece-nos, em cada uma das onze faixas do álbum, uma visão muito peculiar do seu imaginário. A chave da porta de entrada para o mundo de Björk parece assentar no seu interesse assíduo em navegar e viajar, quer pela natureza pueril e fresca da cidade islandesa, quer pelas ruas de uma qualquer cidade cosmopolita onde se cruzam rostos robustos de indivíduos que não se falam. Em Post, a artista parece querer superar-se na sua condição de filha-prodígio da Islândia, propondo-se a uma viagem pelo mundo do caos, cujo roteiro os seus colaboradores conhecem muito bem. Especialmente neste álbum, Björk é filha do mundo. É a hospedeira exótica que a fotografia da capa nos revela, sem nunca negar as suas origens.

«Army Of Me» marca, até ao momento, a melhor entrada de todos os álbuns da artista. Sobre sons maquinais, entre o cavernoso e o soturno, que acompanham o marchar de um exército, vai correndo um discurso duro, sem piedade, a piscar o olho a um regime ditatorial. O fim da opressão dá-se quando «Hyperballad» nasce. Do tímido sussurro dos primeiros versos à euforia final, «Hyperballad» parece querer crescer para um mundo metafísico, onde as coisas não têm um nome. Nesse mundo, bem no topo da maior montanha alguma vez imaginada, existem hiper-emoções que ultrapassam as simples emoções humanas. A música que se ouve, nesse extra-mundo, indicia uma delicadeza melódica invejável, antes de passar pela techno contagiante que cresce até uma brilhante afinação de violinos candidata ao «mais belo momento de Post». Assentes numa base de percussão saliente, «Modern Things» e «Isobel» serão, porventura, os temas que constituem, neste álbum, a maior novidade do conjunto, em relação a Debut. Desenham pequenos «grandes» apontamentos de electrónica minimal, revistos por uma orquestra sinfónica. «It’s Oh So Quiet» transporta-nos para os musicais da Broadway. Björk canta-nos a paixão como ninguém, adicionando ao original uma dose forte de irreverência. «You’ve Been Flirting Again», por seu turno, trata de nos recordar a educação clássica da artista.

Em «Enjoy», Björk diz desejar a simplicidade. Ironicamente ou não, Tricky, na altura saído de fresco dos Massive Attack, constrói para o tema uma das estruturas musicais mais complexas do álbum, entre diversas camadas de sons, numa toada electro-industrial do mais sexy e hipnótico que Björk nos ofereceu até hoje. A electrónica, desta vez delicada e devoradora das paisagens da bela Islândia, volta a envolver-nos os sentidos, como algodão, quando «Possibly Maybe», um dos mais belos temas do álbum, surge. No fecho do álbum, «Cover Me» e «Headphones» revelam o lado mais experimental de Post, aspirando ambos a um qualquer silêncio utópico, em oposição ao ruído das máquinas do tema de abertura. «I like this resonance/ it elevates me/ I don’t recognize myself/ this is very interesting», canta, hipnotizando-nos, em «Headphones». É Björk desejando a superação dos seus limites, com a ajuda de Tricky. É a inconformada artista a pisar o mundo metafísico anunciado em «Hyperballad», segundos antes de adormecer para acordar em Homogenic.

À parte do menos interessante «I Miss You», Post é um álbum repleto de eloquentes capítulos da série iniciada por Björk em Debut, «Em busca da canção pop perfeita». Sejam, assim, consagrados o seu talento e o dos seus coadjuvantes. Amén.


Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt
12/10/2003