Se, em tempos mais idos a cunhagem de um gĂ©nero parecia responsabilidade quase exclusiva de um ou outro luminário da crĂtica musical – agradeça-se ao Simon Reynolds o post-rock ou o neurofunk – numa tentativa de encontrar um denominador comum a uma partilha de referĂŞncias, a mitologia Web 2.0 faz com que essa tarefa seja hoje disseminada rapidamente com direitos de autor cada vez mais dispersos. Assim recentemente, basta pensar em coisas como a witch house ou o chillwave, que nascidas no seio de trĂŞs ou quatro nomes passaram a ser bandeira para todo um arsenal de incompetĂŞncia. Supostamente cunhado por uma persona com o nome brilhante de Lil Internet, o seapunk Ă© mais um desses termos mais ou menos ridĂculos que, neste caso, mais do um gĂ©nero musical Ă© um estilo de vida.
Considerando tudo o que diz respeito Ă vida aquática, o seapunk caracteriza-se por um imaginário que coloca a humanidade em cenários marĂtimos, usando referĂŞncias a filmes como o Waterworld e ao jogo Ecco the Dolphin e adoptando uma indumentária constituĂda por camisas havaianas, colares de conchas e cabelo azul-marinho. As conversas andam em torno de preocupações ambientais, estados de espĂritos elevados e demais ideologia new age que tenha o Oceano como fim Ăşltimo. Friques num novo patamar de organização? Provavelmente um embuste de pouca duração, mas ninguĂ©m leva os gĂłticos muito a sĂ©rio e eles perpetuam-se.
Musicalmente, tudo converge na Coral Records, criada por um dos impulsionadores do movimento, de nome Fire For Effect. Com uma primeira edição intitulada Seapunk, Volume 1 que compila alguns dos nomes associados ao “gĂ©nero” (nĂŁo consigo levar a coisa a sĂ©rio para evitar as aspas) a deixar demarcados os pressupostos musicais : mĂşsica electrĂłnica, tendencialmente dançável e com influĂŞncia maior vinda do perĂodo 92/95, que tanto pode lembrar o Richard D. James do Analog Bubblebath, o lado mais ambiental da rave de uns Orb ou o sampling da feminine pressure. Tudo sem grandes concepções estĂlisticas e permeado por um lado sonhador/psicadĂ©lico pontuado por sons aquáticos, golfinhos, e investidas 8-bit.
Tendo em conta o continuum traçado, faz todo o sentido que esta quinta edição da editora de Los Angeles seja um disco de jungle. No seu estado mais ambiental e cerebral, havia já a tendĂŞncia oceânica do LTJ Bukem epitomizada em “Atlantis” e “Music”, alĂ©m de malhas como “Paradise” do Dj Crystl ou “Open Your Mind” de Foul Play. Com este split de Curtis Vodka e Unknown, estamos portanto, no domĂnio do throwback ao ano de 1994 - quando o jungle deixou o seu lado mais agressivo e soturno – filtrado pela sensibilidade do produtor de quarto nascido na era do Tumblr. Nada de muito original, ou particularmente inventivo, mas feito com o carinho e o respeito indispensáveis para nĂŁo ser melindroso.
“Luv N U” de Curtis Vodka deixa desde logo vincada essa ideia, com vozes de hĂ©lio a orientar a batida sobre pads de teclado, antes da aparição de um baixo em media-res. Como está patente no seu tĂtulo, “XTC NRG” evoca um lado mais fĂsico, com o amen break tomar a dianteira sobre uma voz que vai repetindo ”esctasy” atĂ© Ă exaustĂŁo. Mais interessante, “Blacked Out” dá dois passos atrás atĂ© ao hardcore, e vai-lhe buscar o sintetizador trance para o submergir num ambiente mais desolador. A fechar o lado de Curtis Vodka, “Here is Where U Wanna B” sampla “Me & U” da Cassie num ambiente amniĂłtico com direito a time stretch.
Apresentando argumentos mais válidos, Unknown começa logo com a melhor malha do split. “Tru Luv” está algures entre as melodias labirĂnticas de “Find Yourself” do Jamie Myerson e a desorientação de “R-Type” da Jo, com as vozes de pitch acelerado a trazerem uma sensualidade surpreendente. Uma faceta mais humana, que tem em “Put U On” a sua expressĂŁo máxima, com a batida crispada a ir de encontro a “Real Love” da Mary J. Blige num ponto que a coloca exactamente na passagem do jungle para o 2-step, mas ignorando o ritmo deste Ăşltimo. “NRG” regressa ao old school numa toada bem mais eufĂłrica, com a pianola exultante e o crescendo rĂtmico a desembocarem num sintetizador agreste, na onda de “Dark Angel” de Nasty Habits em versĂŁo esperançosa.
Se nĂŁo deixa de ser criticável o facto de nĂŁo existir aqui grande novidade, nĂŁo podemos deixar pensar em todo o revisionismo garage, punk como exemplo de algo aceite sem grandes conceptualizações geracionais. Mesmo no domĂnio da electrĂłnica, o legado da rave tem sido recolhido por parte de muita da electrĂłnica britânica. Para nĂŁo falar no rehash da new age ou da hipster house da 100% Silk. Pelo menos, neste caso, a descendĂŞncia tem sido encontrada a conta gotas. E sempre constitui uma alternativa prazenteira a todas as pessoas com o bom senso de ignorar o drum & bass dos Ăşltimos anos, sem a necessidade de regressar continuamente aos clássicos da Moving Shadow e da Metalheadz. EfĂ©mero, muito provavelmente, mas isso Ă© uma norma nos dias de hoje.