A máquina do hype é uma coisa terrÃvel. Eleva um ou uma artista à condição de Rei ou Rainha Supremo/a quando, na maior parte das vezes, nunca a irão alcançar. Tolda juÃzos de valor por parte do ouvinte e do crÃtico, que se arrepende quase sempre - quem é que pode garantir sem se rir que João Coração continua a salvar verões? Pior: espelha a mentira, a propaganda, o consumismo imediato e desenfreado tão caracterÃstico das sociedades capitalistas (Querido LÃder, estarás sempre nos nossos corações de operário). É, talvez, o lado mais negativo da conjuntura musical actual e da internet, esse grande campo aberto e caótico onde vale tudo.
A máquina do hype é uma coisa terrÃvel. No entanto, e embora não o queiramos admitir, também tem acertado. Ainda que a propaganda continue a ser um nojo, os/as artistas têm na maior parte dos casos qualidade suficiente, talvez não para serem deificados, mas pelo menos para serem ouvidos por muitas pessoas. Há a questão do consumismo e da música-enquanto-pastilha-elástica, mas é para isso que existe a pop: para não ser pensada. Hoje há conquilhas, amanhã não sabemos: vamos deixar de as comer? Não, juntam-se os amigos, umas cervejas, o sol e o disco do João Coração, que continua a ser incrÃvel mesmo que já só lhe peguemos um par de vezes por ano.
No inÃcio do ano vaticinaram-se futuros diversos a Anna Calvi. Brian Eno e Nick Cave enamoraram-se dela como colegiais. Os crÃticos agarraram-se a ela como se PJ Harvey não fosse lançar mais nenhum disco na vida - e, aliás, este Anna Calvi seria o melhor disco de PJ Harvey em 2011 se a verdadeira não tivesse lançado Let England Shake. Em junho já Anna levava milhares de pessoas para dentro de uma tenda num festival de verão. Em setembro esgotava discotecas da moda. Tudo isto com um disco apenas.
E o hype? Que se foda o hype. Quem tem canções como "Suzanne & I" não precisa de hype algum para ser elogiada. A quem sussurra daquela forma em "No More Words" não lhe faz falta a propaganda. Quem se estreia lançando um disco tão bom e consistente na qualidade das suas canções, de "Desire" a "First We Kiss" até "I'll Be Your Man", citando algumas para não colocar a tracklist inteira, merece quaisquer comparações que se lhe façam ou rótulos que se lhe colem. Se ainda a iremos ouvir em 2012? Isso é sempre difÃcil de dizer, porque ninguém pode prever o futuro. Mas temos a certeza disto: neste ano que passou, Anna Calvi foi grande. E isso já não se lhe pode retirar.
Assim, enquanto o ano não acaba, temos Anna Calvi, a cantora, e Anna Calvi, o disco: uma estreia incrÃvel, canções rock sedutoras como a voz que as canta, e quinze minutos de fama merecidÃssimos, que nos fazem desejar que se prolonguem. Tudo construÃdo de forma bela, arranjos épicos quando têm de o ser, mÃnimos quando o verso assim o pede ("Love Won't Be Leaving", tema que o encerra, será talvez o melhor exemplo de ambos). Quem precisa de religião que construa os deuses que quiser, que os restantes contentar-se-ão com as hóstias e o vinho.