Uma das armadilhas mais frequentes em campos mais ou menos tangenciais Ă mĂșsica de dança Ă© conseguir dar uma sequĂȘncia digna a todo o buzz inflacionado por dois ou trĂȘs singles brilhantes, quando chega a altura de arriscar o formato longa duração. Em tempos recentes, basta pensar como o Underwater Dancehall do Pinch se refugiou de modo sonolento nas premissas de âQawwaliâ ou em Great Lenghts do Martyn como uma pĂĄlida sombra de malhas como âBrokenâ ou âAll I Have is Memoriesâ (Ghost People a repor a dignidade?). Isto sem entrar a fundo na escavação nevrĂĄlgica do falhanço de nomes vindos do Jungle, da House e demais gĂ©neros club-friendly. A lista Ă© infinita. Usando as duas referĂȘncias acima como forma de contextualizar de modo lato o aparecimento de Hyetal no seio da viragem pĂłs-dubstep para o confuso conceito do UK Bass, tambĂ©m Broadcast jogava com as expectativas de um breve passado glorioso.
Tendo dado os primeiros passos no ressaca de um dubstep em modo auto-fĂĄgico, David Corney (nome verdadeiro do mĂșsico de Bristol) foi-se continuamente demarcando da militĂąncia das tarolas quebradas e dos sub-graves, para se acercar de uma linguagem personalizada onde as memĂłrias dos anos 80 eram revistas Ă luz da mĂșsica britĂąnica made in UK. As comparaçÔes frequentes a Miami Vice, ao Prince ou a alguma melancolia prĂ©-IDM a contraporem as associaçÔes a gente menor como o Peverelist ou Shortstuff, sem com isso entrar pela norma rehash que anda a dinamitar a memĂłria colectiva. Uma ascensĂŁo discreta das boas impressĂ”es deixadas com Neon Speech atĂ© a essa malha indescritĂvel de linda que Ă© a âPhoenixâ e que deixou expectativas quase intangĂveis para o ĂĄlbum de estreia.
Quando saiu em Abril, âPhoenixâ estava ainda demasiado presente para que Broadcast se afirmasse como um objecto de valor. Com os recursos e tiques que fizeram dessa canção algo tĂŁo monumental a incidirem com demasiada frequĂȘncia um pouco por todo o lado, acabou por ser prematuramente chutado para canto com aquela esperança tĂ©nue de repescagem quando houvesse tempo/disposição/cabeça para tal. Aquela tesĂŁo de mijo que rapidamente dĂĄ em nada e que sĂł o necessĂĄrio distanciamento temporal permite refrear o suficiente para que se possa ouvir sem entrar pela justaposição mesquinha. Algo que sĂł agora veio a acontecer, numa altura em que os necessĂĄrios balanços levam a uma escavação mais consciente.
Concluindo, fui injusto para com Broadcast. Apesar de ser inegĂĄvel a insistĂȘncia nas batidas mergulhadas em reverb e nos sintetizadores de nĂ©on, existem demasiadas ideias ao longo de Broadcast para que este nĂŁo seja meramente aquele amontoado de variaçÔes sobre a âPhoenixâ que se previa e que, em abono da verdade, era sugerido com a, ainda assim fascinante, âIsland Diamondsâ. Para todos os efeitos, ambas estĂŁo presentes aqui, logo apĂłs a entrada planante com âRitualâ a apontar para uma tonalidade mais sorumbĂĄtica que virĂĄ a ter repercussĂŁo ao longo do disco. Uma nota de sintetizador em escalada triunfal (pense-se na entrada da âMoney For Nothingâ minus azeite) que se desvanece nas profundezas do baixo e de uma batida soterrada, antes de se enredar num harmĂłnico luminoso e vozes baças. Aquilo que se pede a uma malha de entrada.
Esse lado soturno, que tem tambĂ©m servido de identidade para a mediania recente do Zomby ou do Sully, torna-se particularmente explĂcito em âDime Pieceâ, âBoneyardâ e no final com a reveladora âBlack Black Blackâ. A primeira suspende-se numa descida cavernosa do baixo para se ir adensando Ă s custas de ecos e rendilhados de sintetizador em choque benigno, enquanto âBlack Black Blackâ conta com a voz da Alison Garner para uma recuperação do som de Bristol por via da realidade pĂłs-dubstep em cadĂȘncia hermĂ©tica, como que a fechar o cĂrculo iniciado com âRitualâ. âBoneyardâ vai alimentado um 4/4 escorreito de sons alienantes para desembocar num faux-vibrafone em melodia circular. DescendĂȘncia mais ou menos discreta da house que em âSearchlightâ Ă© revelada sem pruridos e com sample de voz eufĂłrica, num paralelo mais paranĂłico com a sensualidade de Velour (projecto de Corney com o Julio Bashmore).
âTransmissionâ e âThe Chaseâ sĂŁo dois interlĂșdios a revelar que o Jon Harvell e o John Carpenter sĂŁo (quase) sempre referĂȘncias de valor, enquanto âBeach Sceneâ Ă© tangencial a âPhoenixâ (omnipresente) no uso da cadĂȘncia da âI Would Die 4 Uâ para a transmutar numa praia sintĂ©tica, onde o tropicalismo Ă© sujeito ao filtro plĂĄstico do CSI : Miami. A necessĂĄria diversĂŁo. Desvios subtis a uma fĂłrmula reconhecida que permitem que Broadcast nĂŁo se venha a transformar num marasmo tĂ©pido, em constante labuta sobre os seus mĂ©ritos. Apesar de uma coerĂȘncia demasiado linear, Broadcast nĂŁo se deixa adormecer, e desviando-se continuamente do efeito papel-de-parede com um uso inteligente de todo o manancial tecnolĂłgico consegue superar a difĂcil tarefa de construir um ĂĄlbum de modo perfeitamente digno. Mesmo que tenha esperado uns meses para me aperceber disso.