A ocasião não era para menos. Com o fim anunciado dos LCD Soundsystem, não se olhou a despesas e optou-se por seguir à letra as regras do desvario total: mansão em Los Angeles, roupas brancas (sempre!) e música, muita música. Foi rei Murphy quem decretou tal ordem de trabalhos, mantendo na mira o cume da caminhada que iniciou em 2002, pouco depois de ter co-fundado a editora DFA.
É assim, portanto, que ao fim de oito anos volvidos, assistimos não ao desfalecer de uma banda mas antes da sua apoteose. Depois do disco debutante, homónimo e duplo (!) lançado em 2005, já poucas dúvidas havia da capacidade que os LCD Soundsystem tinham de pôr gente a dançar, com carisma e bom gosto. Mas o fartote não ficava por ali e, três anos depois – a par de uma carreira repleta de viciantes remixes e compilações chorudas – eis que nos deparamos com Sound Of Silver. Desta vez num formato mais coeso, incluindo canções de sentidos tão opostos mas sobretudo marcantes como “New York I Love You†e “Time To Get Awayâ€, o grupo liderado por rei Murphy já não tinha por onde não liderar o movimento dance-punk de influências disco, sem comparação nos dias que corriam (e correm, como veremos adiante).
This Is Happening. Este é um tÃtulo, uma sugestão, uma premissa de imperatividade que não podia ser mais oportuno. Se “isto está a acontecer†é porque os LCD Soundsystem fizeram pela vida, empenhando-se ao máximo para sacar um disco que não fizesse a sua brilhante carreira esmorecer. Dito “istoâ€, não falharam.
“Dance Yrself Clean†é o mote de entrada para o último longa-duração da banda, uma ode a sintetizadores vintage carregadinhos de história, banhados pela voz de rei Murphy que grita a pulmões bem abertos para que não fiquemos parados. É uma faixa propositadamente desproporcional, apanhando-nos desprevenidos assim que o primeiro break de bateria dispara. Melhor inÃcio de fim de caminhada não poderia haver. Já “Drunk Girlsâ€, óbvio single rock do disco, resulta no momento menos elaborado de This Is Happening: à primeira audição, chegámos a pôr a hipótese do descalabro e que a anterior maravilha de quase nove minutos não teria passado de um oásis – e o fabuloso remix da autoria dos Holy Ghost ajudava a chegar a essa conclusão. Mas como há vezes em que sabe realmente bem enganarmo-nos, “One Touch†eleva novamente a fasquia para patamares endeusados. Desta vez, uma batida bem dançável impõe-se lado a lado com um sintetizador em evolução que acaba por desembocar num maravilhoso riff e palavras bem sincopadas.
É inevitável não vermos algo de “All My Friends†em “I Can Changeâ€, quinta faixa do alinhamento. Mesmo a sequência de acordes é semelhante; ainda assim, algumas ideias diferentes – que passam por certas dissonâncias e, novamente, sintetizadores elaborados à unha – fazem desta uma canção singular, momento de abraços e carÃcias múltiplas (embora tudo não passe de um lamento de rei Murphy a sabe deus quem).
Ironia. É esta a palavra que melhor descreve “You Wanted a Hitâ€, uma espécie de diálogo entre o narrador e quem o ouve. “You wanted a hit, but maybe we don’t do hitsâ€. Pedimos perdão, sua iminência, mas não poderemos entrar em concordância. A vossa capacidade de produzir hits de três, quatro ou nove minutos é louvável. Perdoe-nos a insolência, mas tal sugestão não faz sentido nas nossas mentes. Fim de diálogo. Rei Murphy não levará a mal.
Já “Pow Pow Pow†apresenta-se com uma sonoridade menos elaborada e não podemos esconder que a métrica (inexistente) e respectiva pronunciação do dono do trono nos traz à memória “Once In a Lifetimeâ€, momento alto da carreira dos Talking Heads. Sabemos que para muitos isto significará um imediato nascer de veia na testa, dada a heresia. Excluam os paus e verão.
Como tudo isto não passa de pura interpretação, parece-nos evidente que “Somebody’s Calling Me†e “Home†estão, embora musicalmente distintos, conceptualmente encadeados. Uma espécie de cansaço, desleixo, é patente na primeira. Até o sintetizador desafinado do refrão, ofuscando quase por completo a linha vocal, parece já ilustrar o lema da despedida.
E eis que, sem surpresas, “Home†põe um ponto final na história. Os saudosos “ahhh†que marcam toda a faixa deixam-nos em modo melancolia sem retorno. É o fim de uma linhagem, de pura música de sangue azul. Um caso de singular coesão e sucesso musicais. Pior era se por cá não tivessem passado. Mas assim, com três obras-primas na bagagem, os LCD Soundsystem não nos devem nada. PodÃamos pedir mais discos? Sim, mas corrÃamos o risco de assistir à progressiva putrefacção de um conjunto de excelentes músicos liderados por outro excepcional. This Is Happening foi, sem sombra de dúvidas, a melhor de todas as aparições discográficas da banda. O momento é triste, bem o sabemos. Mas não é de luto. Por isso o rei optou por vestir de branco.