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Rangers Suburban Tours

2010
Olde English Spelling Bee


Os espaços verdes de Oeiras, proto-aldeias de Loures, paisagens industriais da Marinha Grande, o abandono do Barreiro ou os dormitĂłrios silenciosos de Matosinhos. Da encenação recreativa ao sonambulismo rotineiro, existe algo que unifica toda a vivĂȘncia suburbana. A omnipresença da cidade. Uma Meca vizinha obliterada por barreiras psicolĂłgicas e espaço vivo em constante aproximação e recuo, Ă© ela que confere ao subĂșrbio a sua razĂŁo de ser. Centro gravitacional a minutos de distĂąncia, que num comprimento de onda pĂłs-laboral constitui via para o entorpecimento. Ou para o conforto.

Joe Knight nĂŁo saberĂĄ nada sobre estas vivĂȘncias em particular, mas crescer numa ĂĄrea suburbana em Dallas, nĂŁo serĂĄ assim tĂŁo distante de uma infĂąncia em MassamĂĄ. Qualquer pessoa que tenha vivido (pelo menos parte) da sua infĂąncia nos anos 80 e princĂ­pios de 90, sabe o papel que os subĂșrbios tiveram em grande parte da produção cinematogrĂĄfica, televisiva ou musical dessa Ă©poca. Comummente aceite e recriado um pouco por todo o lado. Hoje, memĂłrias deslocadas, cujo imaginĂĄrio se dissolve entre o concreto e o alienado. O tĂ©dio enquanto catalisador comum. Sob o nome de Rangers, Joe Knight dĂĄ som a toda esta vivĂȘncia sobre o princĂ­pio da memĂłria. Para musicar a rotina quotidiana.

Deslocado temporal e espacialmente, Suburban Tours Ă© um disco de viagem que reinventa espaços mentais onde a realidade fĂ­sica se confunde com o fluxo televisivo. Filtrado pela fita empoeirada que confere ao lo-fi uma existĂȘncia vital. Neste plano, Ă© possĂ­vel traçar paralelos com projectos como Ducktails, Lamborghini Crystal ou Julian Lynch, todos eles devotos a uma recuperação dos anos 80 por via da memĂłria refractada. Como em todos eles, a idiossincrasia derivada de uma vivĂȘncia particular trata de lhe conferir uma identidade vincada. Rangers demarca-se de visĂ”es tropicais, da celebração da cultura trash, aproximaçÔes Ă  new age ou fritadeira cerebral derivada das drogas. Sobre Suburban Tours paira uma aura de cinzentismo particular, como se o smog citadino fosse uma ameaça latente tĂŁo reconhecĂ­vel quanto aceite com naturalidade.

Neste ponto, sĂŁo reconhecĂ­veis em Suburban Tours algumas influĂȘncias, regra geral, ausentes dos seus pares norte-americanos. Nomeadamente, um flirt com a mĂșsica britĂąnica nascida nos resquĂ­cios do pĂłs-punk. O phaser e chorus da guitarra de Robin Guthrie ou os rendilhados enevoados dos Felt e um uso abusivo do reverb na caixa-de-ritmos que confere a tudo isto uma carga tensa, quase marcial. Melodias nostĂĄlgicas tecidas em torno de linhas de baixo devedoras daquele funk slow motion tĂŁo em voga nas bandas sonoras de adolescentes (o divertimento domingueiro de “Bel Air” Ă© prova cabal disso mesmo).

Deixando de lado as colagens de Street Smell ou Low Cut Fades, Suburban Tours compĂ”e-se de 11 miniaturas que recriam com uma displicĂȘncia cool tudo aquilo que as tours suburbanas podem ser. Inevitavelmente com caminho atĂ© Ă  cidade. Escape mental que emula o passeio de BMX da infĂąncia, a apatia pĂłs-laboral, a tranquilidade do fim-de-semana ou a velocidade da manhĂŁ. Tudo coberto por uma atmosfera de reconhecimento estranho. A ressonĂąncia emocional serĂĄ meramente especulativa, tratando-se de algo tĂŁo evocativo no seu ascetismo particular.

Numa mĂșsica tĂŁo fixada a um imaginĂĄrio (mesmo que sujeito Ă  mais diversa empatia), os tĂ­tulos das cançÔes, poderĂŁo servir enquanto directrizes. “Out Past Curfew” e “Dome City” sĂŁo a fuga de e para a cidade. O recolher obrigatĂłrio sobre as luzes tĂ©nues e toda a melancolia da vida citadina ao adormecer. Luzes, que na leveza sonhadora de “Airport Lights” ecoam um desejo de partir transversal. ContĂ­nuo com a letargia nocturna de “Glen Carin”, onde aquele piano insistente enxertado directamente de um separador da RTP 2 enfatiza o tĂ©dio subliminar em frente Ă  televisĂŁo num noite de insĂłnia. ReferĂȘncias mais ou menos directas Ă  mĂșsica “papel de parede” que se tornam parte integrante de algo vindo d`A VigĂ­lia da Noite com direito a solo de soft-rock. A guitarra inofensiva de Nile Rogers que em “Golden Triangles” dĂĄ azo a uma serenidade domingueira. O conforto do sofĂĄ versus a vida no exterior.

“Summertime Is Off / I Don’t Wanna Go Out”, canta Knight sob uma manta de efeitos em “Deerfield Village”. O exterior que resplandece em “Woodland Hills” e “Brooke Meadows”, com a praia mesmo ali ao lado. Transfiguração real daquilo que, em Ășltima anĂĄlise, constitui a essĂȘncia de Suburban Tours. O isolamento a servir enquanto catalisador para uma fuga possĂ­vel ao falhanço dos subĂșrbios. Falhanço implĂ­cito num artificialismo estĂ©ril, alienante e desajustado de qualquer naturalismo. Suburban Tours celebra a vida possĂ­vel em toda a apatia circundante, com o desenrasque necessĂĄrio para que tudo isso possa fazer sentido. Acontecer.

Depreende-se facilmente pela prĂłpria escrita que estĂĄ subjacente uma componente imagĂ©tica vincada. Pouco empĂ­rica, Ă© objecto do poder de indução que serĂĄ o maior valor de Suburban Tours. A transversalidade que, entre as VHS do Matt Hoffman, policiais de acção, prĂ©dios feios, e uma necessĂĄria dose de imaginação que faça da dormĂȘncia algo Ăștil. A simplicidade embutida na rotina e o desejo de a extravasar nos mais pequenos gestos. Suburban Tours Ă© isto, de um modo gloriosamente fidedigno.


Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
22/03/2010