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David Sylvian Manafon

2009
Samadhisound / Flur


Não se pode dizer que a carreira de David Sylvian seja marcada pela previsibilidade. Desde os tempos dos Japan (onde se evidenciava o fascínio pela utilização de electrónicas numa direcção pop, ainda que de forma pouco directa) até às aventuras a solo (desde o hit “Forbidden Colors†até à colaboração com Robert Fripp), passando pelo mais recente projecto Nine Horses (trio com o seu irmão Steve Jansen e Burnt Friedman), Sylvian tem trilhando uma série de caminhos diversos, criando para si uma certa mitologia de artista que está constantemente à procura de algo novo. O seu primeiro disco a solo Brilliant Trees, de 1984, é paradigmático da excelência e diversidade dos convidados com que habitualmente se faz rodear: o genial Jon Hassell, o elegante Ryuichi Sakamoto e o co-fundador dos Can, Holger Czukay.

A edição da compilação Everything and Nothing (2000), poderá ter marcado um ponto de viragem definitivo na carreira de Sylvian; encerrando um ciclo, anunciando outro. Deixando para trás essa faceta pop clara, abriu-se a outros horizontes, definitivamente mais aliciantes. Para o disco Blemish, editado em 2003, apostou num apoio instrumental maioritariamente reservado, electrónico, abstracto. E em três dos oito temas do disco arriscou até onde poucos músicos do universo pop/rock terão ido: uma colaboração do genial improvisador Derek Bailey. O guitarrista inglês gravou uma série de solos sobre os quais o cantor adicionou posteriormente a sua voz. O resultado (com as palavras a pairarem sobre o discurso fragmentado da guitarra) deverá ter confundido os seguidores mais fiéis do cantor; os adeptos do guitarrista terão apreciado a abertura da colaboração - as gravações completas de Derek Bailey para este disco encontram-se disponíveis sob o nome The Blemish Sessions.

Este novo Manafon representa mais um passo em frente, entrando Sylvian num terreno algo pantanoso, mais arriscado, menos controlável. Já não se tratam apenas de faixas isoladas, agora já não há tapetes instrumentais feitos à medida, só temas exclusivamente improvisados. Para este novo disco David Sylvian contou com a colaboração de um alargado leque de figuras cimeiras da música improvisada contemporânea: Evan Parker (saxofone), John Butcher (saxofone), Otomo Yoshihide (guitarra, gira-discos), Christian Fennesz (electrónicas), Sachiko M (electrónicas) e ainda um trio de elementos vindos dos históricos AMM: Keith Rowe (guitarra), Eddie Prévost (percussão) e John Tilbury (piano). Sylvian juntou os músicos - dividiu-os por diversos ensembles (de três a oito elementos), em diferentes sessões que tiveram lugar em Londres, Viena e Tóquio - e deu-lhes apenas algumas indicações simples, deixando os músicos a tocar livremente. No final pegou no material gravado e acrescentou a sua voz, sem grande trabalho de edição.

A frase de abertura do primeiro tema do disco, “Small Metal Godsâ€, é suficientemente esclarecedora: “it's the farthest place I've ever been, it's a new frontier for meâ€. Sylvian nunca esteve tão longe, tão frágil, sem rede, no confronto com os instrumentais imprevisíveis. No entanto a tarefa acaba por ser mais fácil de concretizar do que se poderia prever, uma vez que os improvisadores alinharam sempre por uma toada de quietude e auto-controlo - sem os habituais arranques explosivos que se poderiam prever por parte de alguns (Parker e Yoshihide à cabeça). As electrónicas optam por trabalhar simples texturas, os outros músicos também enveredam por opções discretas, deixando de lado fraseados ou marcas pessoais, em favor da coerência da música - os instrumentais funcionam assim como uma espécie de música de câmara abstracta, concentrada e rica em pormenores. Esta postura beneficiou Sylvian, que foi conseguindo encaixar a voz sobre as bases instrumentais – e ainda que por vezes surja a ideia de que voz e instrumentais seguem caminhos diferentes, acabam sempre por se aproximar - concretizando assim uma espécie de alquimia.

Manafon é um aglomerado de preciosos momentos sonoros que poderiam viver em autonomia, mas que acabam por fazer perfeito sentido arrumados sob a nuvem das palavras de Sylvian, cantadas num registo de quase declamação. E, além da própria música (incrível), este disco é histórico na medida em que leva o mundo da improvisação a entrar em diálogo com o universo pop/rock, ao mesmo nível, sem paternalismos ou sobrancerias. Não sendo exactamente um gesto pioneiro (são vários os exemplos de projectos que estabeleceram colaborações pontuais com figuras da livre improvisação ou mesmo do free jazz), a magnífica ambição deste projecto confirma que acabámos de entrar num outro nível de entendimento. Desafiando preconceitos, questionando rótulos, esta poética investida de David Sylvian alcança como resultado último o derrube de fronteiras. A Música agradece.


Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
30/11/2009