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Madlib Beat Konducta Vol.3-4 - In India

2007
Stones Throw / Flur


Repare-se em como não distam assim tanto as dinâmicas que unem o encantador e a cobra dançante que extrai a um cesto através da flauta, e o DJ de hip-hop e o MC que é resgatado à reflexão rimada para cumprir a sua arte verbal na eminência do beat e sample. Ambas as parelhas actuam sob hipnose de um som repetido, fazem uso de um brio exibicionista e o MC que mais atenção atrai à sua volta é aquele que, como a cobra, mais veneno ameaçar soltar enquanto proporciona entretenimento. Diz-se que mais sabe quem menos dorme e talvez esteja certo esse ditado que glorifica as insónias. Isto porque muito sabe a enciclopédia hip-hop Madlib referentemente ao valor de condimento que pode ter, dentro do género, um cenário fantasioso carregado de perigo – esse que é ilusoriamente criado por um DJ que queira incendiária a oralidade do seu MC. Após um primeiro par de volumes tematicamente mais neutros na sua formação de uma banda-sonora imaginária, Madlib reactiva a série instrumental Beat Konducta para, através dos seus capítulos 3 e 4, proporcionar uma aula de arqueologia especializada na recuperação dos sons mais injustamente perdidos na memória da Índia e da sua indústria de cinema Bollywood. A partir daí, Beat Konducta Vol. 3-4 – In India actua como uma espécie de combinado picante de hip-hop com caril proporcional ao aquecimento dos hálitos de MCs prestes a darem o seu melhor na arena verbal.

Depois, abundam os argumentos favoráveis a essa ideia de que por aqui se confecciona o molho ao qual se há-de juntar a voz dos MCs que, até ver, ficam de fora. A inevitavelmente bombástica secção de cordas, que torna "Smoke Circle" numa instigação assumida ao arremesso de rimas para a pilha central, podia até ser o vapor ideal para embriagar Ali G no seu fuzilamento dos hábitos caprichosos de celebridades a jeito da mira. Embora Ali G não seja um MC a sério, é fácil imaginá-lo a combinar as variantes da sua expressão Ride the Punani com a cadência de “Smoke Circle” ou com os loops de citarra (será?) de “Shah Sound”. Sentir-se-ia como um peixe no rio Ganges qualquer MC de toada mais lúdica que aderisse a In India como um cruzamento improvável entre o arquivo enriquecido de Bombay, the Hardway - criação de DJ Shadow e Dan, the Automator - e a névoa stoner (que pode não ser rock) do excelente disco sorumbático Temples of Boom da turma Cypress Hill.

Conforme seria de esperar, In India é nitidamente um objecto estranho que parece nem alimentar pudor face à oportunidade de recuperar sons ao que poderiam ser anúncios a tónicos capilares e dentífricos do meio comercial indiano - quase insinuando, com isso, a crescente presença do hip-hop em toda a publicidade mais incidente na viciação por ritmos e jingles (será necessário relembrar as últimas campanhas da maior companhia de comunicações móveis em Portugal?). Da mesma maneira que a equipa de produção dos Wu-Tang Clan vampirizou praticamente toda a sonoplastia dos filmes dos estúdios Shaw Brothers, Madlib parece empenhado em vistoriar enorme fatia dos sons da vida do consumidor comum na Índia após ter esgotado todas hipóteses no reino das bandas-sonoras made in Bollywood.

Sabe-se também que é fatal encontrar no típico sucesso Bollywood um mecanismo dramático que passe pelo casamento proibido que desafia os planos e tradição de uma ou mais famílias. Por aproximação a esse conceito, Beat Konducta Vol 3-4 – In India funciona também como casamento dificultado entre um acervo fértil em grooves e hooks e a apetência de alguém que procure aqui um disco de corpo inteiro. A menos que esse alguém descodifique o critério de encaixe narrativo usado pelo visionário Madlib, In India dispõe-se como mosaico de retalhos muito mais do que como objecto linear. Quanto muito, compõe uma torre de latas com fitas de cinema exótico que convida à montagem personalizada e samplagens avulsas por parte de cada individuo. A liberdade é elevada ao quadrado quando se alia o furto musical de um terreno musical imensurável a um convite a que se faça desse o que daí melhor resultar. No fundo, isso é hip-hop.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
04/12/2007