DISCOS
Murcof
Remembranza
· 27 Nov 2005 · 08:00 ·
Murcof
Remembranza
2005
Leaf / Flur


Sítios oficiais:
- Murcof
- Leaf
- Flur
Murcof
Remembranza
2005
Leaf / Flur


Sítios oficiais:
- Murcof
- Leaf
- Flur
Dizem que o Oceano Pacífico não tem memória. À clandestinidade de Tijuana, que sobre as águas do Pacífico desagua todo o tipo de imundice proveniente dos seus cartéis, convém realmente que o Pacífico não se recorde com exactidão do que absorveu e fez desaparecer. Mesmo que reflectido nos óculos espelhados da autoridade federal, com jeito e engenho vai resultando o álibi amnésico mantido pela cidade fronteiriça e o oceano anexo. Atirem os galos para o ringue de poeira, frita mais umas quantas pescadillas, bota aí outro copo de mezcal e esqueçamos que o sonho às listas vermelhas e brancas, se vive mesmo aqui ao lado. Afinal, não foi sempre essa habilidade de reter informação uma penosa maldição? Murcof (o dominante disfarce de Fernando Corona) desafia a predisposição nata da nuca mexicana para o ócio e promove a capacidade de memorizar como último recurso ao serviço da fantasia. Murcof parece empenhado em unir os pontos a uma nova realidade ficcionada. Fá-lo à maneira de Leonard Shelby em Memento: registando em polaroids musicais o que de mais espantoso descobre ao trajecto e tentando a partir daí encontrar uma saída ao centro do labirinto em que Remembranza encontra o personagem que um dia partiu à descoberta do acaso galáctico numa terça-feira (ou seja, no primeiro álbum Martes).

Ao segundo disco de originais (se entendermos Utopia como um atalho), a bússola passa a ser uma roleta. Remembranza consegue esforçadamente conservar uma noção da distância percorrida em espiral até ao centro da circunferência (e epicentro da sua amnésia), mas é um disco absolutamente destituído de referências cardeais. Quando dá por si distante de todas as orientações periféricas, encontra salvação na nostalgia invisivelmente épica de “Rostro” (a faixa que faltou à banda-sonora de 21 gramas) e um bilhete de regresso à casa de partida na expurgação ambient de “Ruido”. Sempre que dá por si com os músculos atrofiados, Remembranza reaprende os seus movimentos motores a partir de uma fisioterapia à base de minimalismos e sinfonias de bolso. Quando adquire suficiente confiança e liberdade, agarra-se firme aos instrumentos de cordas (o tal traço clássico que Murcof não dispensa) e é a partir daí que, nem que por breves instantes, vislumbra toda a dimensão ao trajecto traçado à memória.

A maior dificuldade de Remembranza passa pelo desafio que constitui convencer-se a si mesmo de que são funcionais e firmes as memórias que o seu evoluir forjou (isto sem se beliscar com fatais interrupções de audição ou ruídos de fundo). Um pouco como acontece em dezenas de clássicos da ficção científica, mas também no cinema lixo que não teme o absurdo. Caso de Aberto Até de Madrugada, o inenarrável filme trash que Robert Rodriguez realizou com a bênção de um Quentin Tarantino, a quem a Miramax, após a revolução Pulp Fiction, não era capaz de dizer que não. Assim que a dupla de protagonistas atravessava a fronteira californiana rumo ao México, a lógica colidia sobre as ortigas e era a fantasia que reinava. Após beber tequilla à fonte dos pés de Salma Hayek (Santanico Pandemonium!!), o personagem interpretado por Quentin Tarantino morria à mercê dos dentes vampíricos da dançarina macabra. Aposto que nos últimos instantes da sua miserável vida, o psicótico Seth Gecko imaginou uma harmoniosa e sexualmente activa vida ao lado da voluptuosa tentação que lhe ceifou a vida. Afinal, aquela velha história de que a vida inteira nos passa à frente dos olhos tem algum sentido. A vida ou a projecção fantasiosa e ideal que a partir dela se conjuga num último fôlego. Remembranza é inesquecível, nem que seja apenas durante os seus 55 minutos de duração.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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